“Quem não convive com cadeirantes muitas vezes enxerga um sofrimento exagerado. Não é assim”

Luiz Serafim - 22 fev 2019
Luiz Serafim imita o quadro de Edward Munch, e imita o Calvin, na Disney, onde passou oito dias com o filho, cadeirante.
Luiz Serafim - 22 fev 2019
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por Luiz Serafim

Tem gente que sonha com as férias para pegar a estrada sobre duas rodas de uma motocicleta. Eu e meu filho contamos os dias para colocarmos os quatro pneus de sua cadeira de rodas para rodar pelo mundo.

Ele tem 13 anos e não fabrica muito bem uma dessas proteínas vitais para nossos movimentos. Isso nunca impediu nossa felicidade. Pelo contrário, deve ter aumentado nosso apetite para aproveitar intensamente cada instante e celebrar a vida todo dia.

As férias de dezembro de 2018 seriam nossa primeira grande viagem entre pai e filho, após meu divórcio. O destino pouco importava, mas decidimos ir a Orlando por seus encantos para um adolescente fascinado por histórias da Marvel, Star Wars e outros símbolos contemporâneos.

Desembarcamos no aeroporto internacional de Orlando e rapidamente recordamos que os Estados Unidos não são a Alemanha

Ao sair da aeronave, no primeiro corredor, nos aguardava um elevador quebrado. Perguntei o que fazer para o funcionário colombiano designado a nos acompanhar, mas ele não tinha solução. Pensei rápido: carrego meu filho no colo e desço a escada rolante enquanto meu colega de Bogotá desce com a cadeira de rodas nos braços. Essa não é a primeira vez que enfrentamos este tipo de desafio, mas nunca imaginei que poderia acontecer nos EUA, com seu padrão de eficiência e enorme medo de processos. Confesso que descemos nos divertindo com a cena inusitada, mesmo cansados do voo, certos de que a viagem prometeria boas aventuras.

 

Luiz e Gabriel, pai e filho, percorreram mais de 10 km por dia para curtir as atrações da Disney.

Buscamos nosso carro alugado, uma SUV da Nissan chamada Rogue a quem carinhosamente apelidamos de Rogue One. Sim, já contei que meu filho ama Star Wars. Se você não sabe, o principal critério que aplico para escolher um carro é saber se cabe a cadeira de rodas no porta-malas. Ponto para Rogue One que ainda por cima foi emplacado em Virginia. As placas americanas têm frases publicitárias que definem os Estados e fiquei contente com a descoberta de que “Virginia is for Lovers” graças a uma campanha de turismo de 1968. Ali estavam dois Amantes da Vida a bordo do Rogue One, prontos para começar a jornada por sete parques, o Cabo Canaveral e a cidade de Orlando.

Gabriel fez o plano de viagem, priorizando a ordem das atrações do menos para o mais interessante, de acordo com sua visão de mundo, começando com Magic Kingdom, um lugar que ele considerava como voltado para crianças menores, fãs de princesas e de personagens que nada lhe diziam respeito.

Para um menino de 13 anos, mesmo o Mickey com suas nove décadas é um completo desconhecido. O que dirá do Grilo Falante e do Peninha?

Para nossa surpresa, este era o parque mais frequentado, quase congestionado. Se você estiver com uma cadeira de rodas, desviando de 30 mil pessoas e enfrentando as longas filas, poderá sentir a mesma angústia de quando está na praça de alimentação de um shopping movimentado, só que vendo o castelo do Walt Disney no lugar do restaurante a quilo.

Muita gente pergunta se cadeirante tem preferência para encurtar os tempos na fila. Aqui no Brasil, por força de lei, chegamos e entramos nas atrações, atendidos com prioridade. Lá nos parques de Orlando, você vai até o serviço de clientes e consegue uma carteira especial que irá lhe permitir agendar um horário de entrada. Vamos supor que determinado brinquedo tem uma fila de 50 minutos de espera. Com a tal carteirinha, agenda-se com o funcionário um horário de retorno para 40 minutos depois. Reduz só 10 minutos de espera, mas não precisa ficar no desconforto da fila. Melhor que nada.

Outra diferença é que, lá nos EUA, pessoas com mobilidade reduzida estão em todos os lugares, participando ativamente da vida social. Nos estacionamentos dos parques, há centenas de vagas para cadeirantes e elas estão quase todas cheias. Aqui no Brasil, na nossa experiência, os lugares oferecem meia dúzia de vagas, quase sempre ocupadas por canalhas infratores.

Essa percepção de sociedade inclusiva faz bem. No Brasil, penso que muitas vezes meu filho deve se sentir como um marciano, já que é o único cadeirante da escola, da sala de cinema, do supermercado

Lá, era mais um dentro de um batalhão.

Por outro lado, não se vê quase nenhum arroubo de solidariedade por parte das pessoas. Se lá tudo é acessível e bem planejado, com rampas de acesso, veículos de transporte público preparados e outras coisas, não é normal que alguém se ofereça para ajudar. Já posso conseguir um job no Cirque du Soleil depois de desenvolver minha habilidade de malabarista, empurrando cadeira com uma mão e bandeja com pratos e copos com a outra, me desviando da multidão ensandecida nos típicos restaurantes para manadas, onde primeiro se paga, depois se busca comida e por fim, se vai a uma mesa.

Já tinha ouvido falar inúmeras vezes da capacidade incomparável da Disney em proporcionar momentos mágicos a seus visitantes. Não há dúvida de que estes parques são muito competentes em criar o ambiente perfeito de entretenimento, mas confesso que não experimentei nenhum destes fenômenos que surpreendem turistas. É aquele problema de ter expectativa muito alta com as coisas.

Nos brinquedos, há funcionários felizes, sorridentes e atenciosos, mas também cruzamos com os indiferentes e mal humorados. Usamos muitos banheiros adaptados e a maioria deles estava em boas condições, exalando um indefectível cheiro doce de canela, mas pelo menos um deles estava emporcalhado. Ora, tudo aceitável, mas por um minuto você sonha que os próprios Oompa Loompas estarão lá para lhe ajudar com sua higiene e que o balconista da pizza lhe atenderá sorrindo e cantarolando como num musical.

É bom lembrar que mundo encantado só existe mesmo nos filmes da Disney

As atrações bem feitas, a qualidade da cenografia, a tecnologia embutida nas experiências de simuladores e filmes 3D, o talento dos artistas, a magia do cinema, tudo é perfeito, responsável por tornar Orlando um destino irresistível.

Os parques são enormes e passear por eles, com ou sem cadeira de rodas, requer um belo preparo físico. O contador de passos do meu iPhone calculou que andamos mais de 10 quilômetros por dia. Desconsiderando qualquer desgaste, meu filho seguia disposto a tudo encarar. É um valente. As montanhas-russas e simuladores radicais eram mais complicados com aquela placa de advertência que não recomenda a atração para quem tem problemas de saúde. Foi aí que vivemos os dois únicos momentos difíceis em toda a viagem.

O primeiro, no Pandora, atração super disputada no Animal Kingdom derivada do filme Avatar. Esperamos nosso horário, chegamos na sala do simulador, mas o visitante tem que se sentar num banco semelhante ao de uma moto que requer equilíbrio do passageiro. Coloquei meu filho ali na cadeira-moto, tentei equilibrá-lo de todos os jeitos, mas ele sentiu que não ia dar certo. Tivemos que desistir com um gosto amargo na boca. A frustração foi tamanha que levou umas três horas para meu filho voltar a falar alguma coisa.

O segundo foi no Gringotts Bank do Parque Universal. Já escaldados, fiz uma série de interrogatórios com os funcionários para evitar nova frustração. Entramos enfim no carrinho, mas na hora de baixar aquela trava de segurança até nossas coxas, a maldita barra não passava pelo peito do meu filho. Ele usa em alguns momentos um colete plástico, espécie de armadura de super-herói, para manter o tronco ereto. Por algum motivo, a barra não descia o suficiente para travar e, como decretou o funcionário, desse modo não era permitido partir. E nunca existe alternativa. Naqueles segundos, nossa vontade era lançar o famoso feitiço Avada Kedavra contra o mundo… mais três horas de silêncio. O filho tomando ciência de que nem sempre consegue fazer tudo que deseja, o pai constatando que nem sempre consegue superar os obstáculos.

Mas isso acontece na vida de todos e logo voltamos ao entusiasmo de sempre, atirando nos alienígenas do Men in Black, dançando ao som dos Blues Brothers e nos sacudindo no simulador dos Simpsons, colecionando momentos inesquecíveis.

Quem não convive com cadeiras de rodas e outros desafios de mobilidade, muitas vezes enxerga as situações que enfrentamos com sofrimento exagerado

Nós gostamos de combater essa perspectiva, espalhando alegria e tornando os momentos mais divertidos. Se começa a garoar no parque, imitamos Gene Kelly e rodopiamos a cadeira, cantando Singing in the rain; se encontrarmos qualquer rampa, soltamos o freio e descemos com emoção; se há uma escada íngreme pela frente, escalamos os degraus cuidadosamente de ré, nos imaginando numa missão heróica. Nunca há montanha tão alta ou vale tão profundo que nos desanime. É o efeito colateral de quem enfrenta estes desafios de saúde, passando a acreditar que nada é impossível e que precisa fazer cada minuto valer a pena.

Concordamos com o protagonista de um dos romances do escritor Mia Couto, para quem “a vida é demasiado preciosa para ser esbanjada num mundo desencantado”. E vamos procurando encher esse mundo de cores, sons, sabores. É assim que, “na hora das comidas”, sem querermos voltar americanizados, nosso roteiro tinha restaurante vietnamita, banquete etíope, cozinha indiana e um autêntico almoço cubano, além da bendita cerveja amanteigada do Harry Potter e das assombrosas coxas de peru. Na área musical, compramos dois kazoos, pequeninos instrumentos de sopro, para improvisarmos com estilo sobre as onipresentes canções natalinas.

Já exaustos e ansiosos para retornar, chegamos ao aeroporto novamente como malabaristas, equilibrando um sabre de luz profissional e uma enorme girafa de madeira junto com as malas.

Ao decolarmos exaustos, estávamos em estado de graça, realizados com nossa aventura

Naturalmente, nos demos as mãos e ficamos assim, por minutos. Nenhuma cena seria mais perfeita para ilustrar nossos dias de respeito, cumplicidade, superação e amor depois dessas duas semanas. Discretamente, com o celular, eternizei o momento.

Depois de 80 quilômetros de solavancos e sacolejos, a cadeira de rodas precisa de uma revisão. Mal podemos esperar para colocar seus quatro pneus na nossa próxima trilha. A vida não para.

 

 

Luiz Serafim, 48, é pai do Gabriel, pianista, professor, palestrante, escritor e head de marketing da 3M. É autor de O Poder da Inovação (editora Saraiva) e escreverá outro livro ainda este ano.

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