por Henrique Corredor Barbosa
No fim de 2017, o incômodo devido ao meu distanciamento em relação às iniciativas sociais alcançou o seu ápice. Já havia mais de uma década desde que a minha dedicação ao terceiro setor tinha ficado para trás.
Foi no segundo ano da faculdade de Direito, em 2000, que eu tive o primeiro contato com o trabalho voluntário. Naquele ano, conheci a Sociedade Brasileira de Solidariedade, uma ONG presidida por Cesar Tardin, que era meu professor de ética profissional.
Como forma de compensar minhas inúmeras faltas na matéria dele (nessa época, o estágio me consumia muito tempo), César sugeriu que eu dedicasse algumas horas semanais ao voluntariado na SBS. Assim, ele afirmou, eu poderia aprender muito mais sobre ética profissional no terceiro setor do que sentado em uma sala de aula.
Foram as experiências vivenciadas a partir desse convite que me fizeram sentir de perto a dura realidade da desigualdade social no Rio de Janeiro e refletir sobre o dever cívico de pensar a sociedade de forma mais coletiva
Após o fim da faculdade, foi necessário encarar o difícil mercado de trabalho e as responsabilidades da vida adulta. Seguiram-se, então, anos de foco na estabilidade profissional, em cuidar da família e em projetos pessoais.
Por mais legítimos que fossem meus anseios individuais, a minha dedicação exclusiva a esses anseios, após mais de uma década, me causava um mal-estar cada vez maior. E deixava uma sensação de incompletude, falta de propósito, perda de oportunidades…
Esse era o meu estado de inquietude quando, no fim de 2017, me deparei com o anúncio de um projeto da ONG Instituto Dharma, o “Trekking Solidário ao Kilimanjaro”.
Um grupo de médicos e montanhistas faria a ascensão ao cume da maior montanha do continente africano, no norte da Tanzânia, junto à fronteira com o Quênia. Em seguida, eles visitariam as vilas do entorno para prestar, por uma semana, atendimento médico gratuito.
Escalar o Kilimanjaro era um sonho antigo. Concretizar esse sonho, no contexto de um trabalho voluntário, era simplesmente perfeito para o momento que eu vivia
Fizemos a escalada pela rota Machame. No dia 21 de agosto de 2018, nosso grupo alcançou os 5 895 metros do topo da África. Tão ou mais importante quanto esse feito, porém, foi resgatar o meu prazer em servir ao próximo.
Os atendimentos ocorreram no interior da Tanzânia, nas cercanias de Moshe, que serviu como cidade-base. Nas expedições do Dharma, em geral há duas ou três vagas para voluntários não-médicos, encarregados de dar suporte. O meu trabalho era fazer a triagem dos pacientes.
Junto com um tradutor, eu fazia esse primeiro atendimento, via quais eram as queixas, direcionava para as especialidades. No caso de crianças com queixa de dor de barriga, sob orientação dos médicos, já dava logo um comprimido de vermífugo (a região é muito afetada por vermes).
Em outro dia, fiquei encarregado da pesagem e do controle da altura das crianças. Essas informações são fornecidas às equipes de saúde locais e permitem que, quando o Dharma volte, um ano depois, a gente possa fazer o comparativo do crescimento.
O serviço voluntário, além de trazer enorme aprendizado e de nos fazer enxergar fora da bolha em que vivemos, nos permite sentir uma felicidade menos efêmera do que aquela que se obtém com o consumo e os prazeres individuais. É felicidade compartilhada: está sempre acompanhada da felicidade dos outros
O voluntariado gera, ainda, vínculos de amizade e de afinidade muito fortes, agregando, a cada trabalho, novos elos na corrente por uma sociedade civil mais ativa. No Kilimanjaro não foi diferente. Vários elos se reencontrariam em iniciativas posteriores.
Logo que voltei ao Brasil, estava decidido a resgatar minha participação nos projetos sociais. E conforme as oportunidades foram aparecendo, eu me agarrei a elas.
A primeira não tardou muito. Surgiu numa conversa com uma estagiária do escritório em que sou sócio. Carla Abreu me contou sobre sua incrível experiência num mutirão de construção de moradias emergenciais, promovido pela ONG TETO, em uma comunidade paupérrima da Baixada Fluminense.
Carla encerrou o seu fascinante relato com a informação de que o TETO precisava de assessoria jurídica. E assim, a primeira porta para o pretendido resgate se abria
Três meses depois, nosso escritório já atendia algumas demandas jurídicas do TETO, havia se tornado doador permanente da instituição e recebido, em contrapartida, o direito de participar de dois mutirões de construção de moradias emergenciais.
Numa sexta-feira de abril de 2019, desacreditando todas as opiniões iniciais, a equipe formada por dez membros do escritório — entre advogados, estagiários e sócios — embarcou em um ônibus junto com outras dezenas de voluntários rumo à comunidade de Portelinha, em Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio.
Nossa missão era construir, até o final do domingo, uma moradia para uma família que, até então, vivia em condições muito precárias, num barraco feito de papelão, lona e restos de entulho.
Naquele final de semana, experimentei a mais impactante transformação que já vivi por meio de um trabalho voluntário. A realidade dos moradores da Portelinha, que compartilhamos por dois dias, era crítica, dura e doída demais para ser esquecida ou varrida para baixo do tapete
Nenhum de nós retornou igual ao conforto de nossas casas após sentir a crueldade de uma desigualdade atroz e extrema. Principalmente quando percebemos que aquela brutal realidade estava tão próxima de nós.
Aquela experiência era importante demais para não ser compartilhada. Assim, ao longo de 2019, escolhi dois novos grupos de amigos para participarem de outros mutirões, fazendo com que cada um se tornasse um novo elo da corrente e um potencial braço de atuação.
A retomada dos projetos sociais ainda guardava outro capítulo muito bonito para 2019. Em janeiro, alguns meses após o retorno da África, enviei uma mensagem para a Karina Oliani, presidente do Dharma, com uma ideia para um novo projeto.
Lembro bem de ter terminado a mensagem com receio de que ela fosse achar a ideia estapafúrdia: reunir médicos voluntários do Dharma que soubessem velejar de kitesurf para percorrer parte da costa do Nordeste brasileiro — mesclando um dia de velejo com outro de atendimento à população das vilas mais pobres por onde fôssemos passando.
Karina adorou a ideia. E assim, no dia 12 de setembro de 2019, um eclético grupo de 30 pessoas, entre médicos de diferentes especialidades (incluindo alguns amigos do Kilimanjaro), outros voluntários e o staff de motoristas, guias e apoiadores, reunia-se na praia de Guajirú, no Ceará.
Ali, demos início a uma expedição que percorreu 380 km de costa, durante dez dias, até a praia de Barra Grande, no Piauí. O registro dessa fantástica viagem gerou um documentário com lindas imagens, o Downwind Solidário, que foi exibido no Canal OFF
Este ano, com a pandemia, em meio ao baque inicial do isolamento e diante da percepção do tamanho da crise que viria a reboque, logo veio à mente a dificuldade que os moradores das comunidades atendidas pelo TETO teriam que enfrentar.
São pessoas que vivem sem condições mínimas de dignidade. A maioria precisa dividir seus precários barracos com muitos membros da família. Como, então, fazer isolamento?
Além disso, não há saneamento básico — e, em muitos casos, nem sequer fornecimento de água. Como fazer a higiene? O que já era caótico e muito grave se tornaria ainda mais insustentável.
Algo precisava ser feito. Surgiu a ideia de uma campanha de arrecadação para comprar comida e itens para auxiliar no controle do contágio em comunidades atendidas pelo TETO, onde teríamos o imprescindível apoio de lideranças locais, que fariam a seleção das famílias mais necessitadas.
Dois dias após o início da campanha, já tínhamos arrecadado 75 cestas. Na segunda semana, foram outras 200. Sendo que, até ali, havíamos recorrido apenas aos amigos mais próximos
Na terceira semana, o Instituto Dharma abraçou a campanha, trazendo novos apoiadores e ampliando os canais de divulgação. Em homenagem à força dos vários elos que se uniam ou se reencontravam, batizamos a iniciativa de #JuntosVenceremos.
Prestes a completar seu quarto mês de atuação, a #JuntosVenceremos já alcançou 14 comunidades nos municípios de Duque de Caxias, São João de Meriti e Magé. Regiões menos visíveis no entorno da “Cidade Maravilhosa”.
Foram entregues, até agora, 2 800 cestas básicas, equivalentes a 54 toneladas, 21 500 litros de água mineral, 125 mil litros de água tratada, 8 mil máscaras de proteção e 4 300 frascos de álcool em gel.
Nossa sensação desde aquele promissor início se confirmou ao longo dos meses. A pandemia aumentou a sensibilidade de grande parte da sociedade para os problemas sociais — e fez com que essa parcela da população estivesse mais disposta a contribuir para as várias iniciativas sociais que foram surgindo.
Há claramente uma onda de solidariedade. O desafio, para além de surfar essa onda, é torná-la perene
Na estrutura social idealizada há séculos, criou-se a (falsa) impressão de que o Estado é capaz de resolver todas as nossas mazelas e de que a contribuição dada pelos cidadãos, através dos tributos, seria suficiente para distribuir renda e assegurar oportunidades dignas às classes menos favorecidas.
A realidade, na prática, é bem diferente. E fica cada vez mais nítida a necessidade de uma sociedade civil fortemente ativa e organizada.
Há um cenário caótico de desigualdade. Porém, a experiência que tive nos últimos anos e a onda sentida nos últimos meses mostram que existe uma parcela significativa da população brasileira com vontade de estender seu dever cívico para além do voto e do pagamento de tributos.
A hora é agora. Hora de se organizar — e de agir.
Henrique Corredor Barbosa é carioca, advogado e idealizador de projetos sociais. Formado pela PUC-RJ e especializado em Direito Tributário, é sócio do escritório Raphael Miranda Advogados, além de conselheiro jurídico e embaixador do Instituto Dharma no Rio de Janeiro e voluntário da ONG TETO.
Filha de missionários, a colombiana Lina Maria Useche Kempf veio viver em Curitiba aos 12 anos. Ela conta como cofundou a Aliança Empreendedora para impulsionar a prosperidade por meio do estímulo a microempreendedores de baixa renda.
E se você só tivesse 40 segundos para evitar uma tragédia? Voluntário do Centro de Valorização da Vida, Thiago Ito fala sobre o desafio de criar um mini doc que viralizou nas redes com uma mensagem de esperança em favor da saúde mental.
Durante 12 anos, Flávia Tafner se desdobrou para acolher Cláudio, seu marido, que sofria de esclerose lateral amiotrófica. Ela conta como transformou essa experiência num livro e o que aprendeu sobre o real significado de cuidados paliativos.