“Seu Guto, qual é o traço que eu devo fazer?”
“Hum… Qual é o traço que você costuma fazer?”
Qualquer que fosse a resposta do pedreiro, a resposta do Guto teria sido a mesma: “Mantenha assim”.
Quase todo dia o Guto tinha que ligar de Novo Airão, município Amazonense às margens do Rio Negro, para seu padrasto João, em São Paulo. Naquela noite, João lhe explicou que “traço” é a proporção dos ingredientes (cimento, areia e água) que compõem o concreto. Augusto Costa Filho e sua esposa Fabiana Boaretto, ambos com 34 anos e formados em Relações Internacionais (além disso, ela é Administradora e ele cursou Economia), não sabiam nada sobre construção, sobre Amazônia ou sobre hotelaria.
Mas, com a cara e a coragem, foram enfiar a mão na massa e na argamassa para construir e tocar o Anavilhanas Jungle Lodge, um pequeno e exclusivo hotel de selva inaugurado em 2007. O empreendimento fica a 2h30 de Manaus, em frente ao arquipélago de Anavilhanas, um Parque Nacional com mais de 400 ilhas cercado pelo Rio Negro (que tem pH ácido onde não proliferam mosquitos). Com capacidade para 50 hóspedes, há 16 chalés e 6 bangalôs, dois deles panorâmicos e com vista para a mata.
Mas esta não é mais uma história de um casal cansado da vida na cidade. “A gente não é fugido de São Paulo. Aqui tem muita coisa muito legal, que depois de morar quatro anos no mato você passa a apreciar muito. Eu não estava cansado, como poderia estar cansado aos 24 anos? Na verdade a gente estava no auge!”, conta Guto.
Há onze anos, como trainee do Unibanco, Fabi tinha um salário bom e carreira promissora. Apaixonado por tecnologia, o marido rapidamente galgava posições na Intel. Mas Fabi diz que o histórico familiar chamava para o empreendedorismo: “Meu pai é um self-made man, que estudou até o terceiro colegial e deu certo na vida, e o padrasto do Guto hoje administra os 10 motéis que construiu. A gente gostava da nossa vida em São Paulo, mas ser dono do próprio negócio sempre foi um valor para nós”.
O desejo de empreender ganhou corpo em uma conversa de bar em setembro de 2005. Tempos antes o Guto tinha feito um mochilão para a Amazônia com 2 amigos. Passaram dias navegando no rio Madeira e no rio Negro, conheceram diversos vilarejos e personagens inesquecíveis, mas encontrar quem os levasse para dentro da floresta deu trabalho. Descobriram que entrar no mato não era tarefa simples. A dificuldade dos três amigos foi a deixa que o casal procurava: Guto e Fabi iriam empreender na Amazônia, construindo um hotel que levasse ao turista a experiência da selva.
EMPREENDER NO MEIO DE UM NADA INFINITO
Ainda era outubro de 2005 quando o Guto apresentou a ideia com o padrasto João, depois de várias planilhas feitas pela Fabi. “Lancei algumas informações e ele, que é engenheiro civil e na juventude tinha construído uma fábrica da Philco na Zona Franca de Manaus, gostou da ideia. Tiramos férias e fomos para lá”.
Fabi, ainda sem conhecer a Amazônia e sem férias a tirar, ficou em São Paulo. O Guto e o João embarcaram para a cidade que margeia o encontro dos rios Amazonas, Negro e Solimões. Navegaram pelos arredores da capital amazonense e tudo lhes pareceu urbanizado demais. Seguiram por terra para outros municípios e também não gostaram do que viram.
Finalmente alguém indicou Novo Airão, cidadela de 17 mil habitantes na beira do rio Negro. Desembarcaram no estaleiro do Antônio Maria, um construtor de barcos que teria papel fundamental na história do hotel, e ali encontraram a Amazônia que procuravam. Estavam de frente para o que hoje é o Parque Nacional de Anavilhanas, o segundo maior arquipélago fluvial do planeta.
Antônio Maria foi uma espécie de “padrinho” e apresentou a região aos dois. Barco vai, barco vem, depararam-se com um terreno de 45 hectares (cerca de 63 campos de futebol). Guto escalou o pequeno barranco de lama que caracteriza as margens do Negro e deu de cara com uma surucucu e um bando de macacos. Era o terreno perfeito: floresta intocada, acesso de carro por Manaus (seria preciso abrir 2 quilômetros de estrada de terra a partir de uma estrada asfaltada) e escritura em ordem (coisa rara na região). Voltaram a São Paulo e, semanas depois, o João arrematou a propriedade por 39 mil reais.
Com o terreno comprado, decidiram a estrutura societária: João seria dono de 50% do empreendimento e entraria com a grana. Guto e Fabi, donos da outra metade, tocariam a obra e administrariam o Anavilhanas, com o compromisso de quitar a dívida correspondente à sua parte. Faltava “só” construir o hotel. Já era 2006 e chegava a hora do casal se mudar para Novo Airão, onde viveriam pelos quatro anos seguintes, sem internet e sem celular.
DESAFIOS DO TIPO PICADA DE JARARACA E MALÁRIA
A primeira etapa era cuidar da papelada. Bateram na porta da prefeitura e deram de cara com a informalidade de uma terra que não está muito acostumada ao rigor da lei. Fabi conta que o município não impôs obstáculo algum: “Eles diziam ‘Ah, você quer construir um hotel aqui? Claro, faz do jeito que você quiser! Onde eu assino?’”. Mas os empreendedores de primeira viagem queriam fazer tudo nos conformes. Na esfera estadual, ao dizerem que queriam construir um hotel em Novo Airão, a reação foi de espanto, como conta Fabi:
“Lá os hotéis só procuram o Ibama só depois de prontos. Acho que fomos os primeiros, talvez os únicos, a só começar a obra com a licença ambiental”
Fabi e Guto tiveram total colaboração do Ibama para fazer a obra dentro dos parâmetros da lei ambiental. Levaram biólogo e agrônomo para a propriedade, fizeram estudo de impacto ambiental e, em quatro meses, saiu o alvará.
Guto, que é formado RI, foi mestre obras durante os nove meses de construção. Uma semana por mês, o padrasto engenheiro vinha de São Paulo para ajudar. Antônio Maria, aquele do estaleiro, foi fundamental. O olhar experiente do construtor de barcos determinava qual seria o tipo ideal de madeira para cada vão, cada piso e cada viga. O homem virou consultor durante toda a obra, ajudando a transformar um terreno virgem em um hotel encravado na selva, com desmatamento de apenas 0,3% da área do terreno.
Guto é categórico ao falar do período da construção: “Foi o pior ano da minha vida”. Carregou tora, subiu parede e, antes de aprender que cobra tem cheiro, foi mordido por uma jararaca. O soro antiofídico aplicado em Novo Airão funcionou, mas um processo inflamatório causado por bactérias da boca da serpente levou Guto a passar uma noite no Hospital de Doenças Tropicais de Manaus (público) e duas outras num particular, até finalmente se render e retornar a São Paulo, onde ficou 10 dias internado no Einstein tomando cinco tipos de antibiótico diferentes.
Fabi também não passou ilesa pela construção. Ela cuidava de todas as compras — isso a 180 quilômetros de Manaus, sem internet e sem celular. No meio do caminho, contraiu malária. “Ficou imprestável”, diz o Guto, “foi muito pior que a minha mordida de cobra.”
COMO TRAZER O MUNDO PARA DENTRO DA AMAZÔNIA
Em fevereiro de 2007 Fabi e Guto inauguraram o Anavilhanas. Era o começo de mais uma etapa. Recebiam um salário de 2 mil reais para trabalhar sem folga. Todos os processos passavam por eles. Tornaram-se também uma empresa de traslados, para levar os hóspedes do aeroporto de Manaus até o hotel. A cozinha tampouco era terceirizada: a própria Fabi cuidava pessoalmente das refeições (sempre um buffet farto com pratos descolados baseados em ingredientes regionais). Ela conta:
“Tivemos que nos tornar uma empresa de muitas coisas além da hotelaria, porque vimos que terceirizar serviços, com a oferta local, não daria certo”
Problemas com os funcionários não faltaram. Os treinamentos passavam por coisas como explicar que eles não podiam entrar na piscina junto com hóspede e que eles não deveriam ser os primeiros a se servir. Mas Guto conta que ele e Fabi se preocupavam em falar menos e fazer mais. “A gente ia pela lógica do exemplo, fazendo todas as tarefas. Quando vinha o caminhão limpar o sistema de esgoto, quem abria a tampa e mostrava tudo era eu. Fui motorista, manutentor, guia. A Fabi foi cozinheira, faxineira, camareira, eletricista”, ele conta.
Os tempos de alta rotatividade na equipe ficaram para trás, e alguns funcionários estão com eles desde o início da operação. Hoje o Anavilhanas emprega 65 pessoas e o hotel tornou-se conhecido pelos habitantes locais como um lugar que “paga bem, mas é exigente”.
No dia 17 de setembro de 2007 um golpe de sorte deu um empurrãozinho no empreendimento: o Anavilhanas Jungle Lodge virou matéria no New York Times, graças a um repórter que apareceu lá por acaso.
“A gente conseguiu a proeza de emplacar logo no primeiro ano. Fechamos 2007 com 3 mil reais positivos”, conta Guto. Com um investimento inicial de cerca de 3 milhões de reais (corrigidos para valores atuais), o hotel foi vendo seus números crescerem ano após ano. O começo foi, nas palavras de Guto, “extremamente espartano”, com conceito mas pouco mobiliário e decoração.
Hoje o Anavilhanas tem capacidade para 50 hóspedes e as diárias vão de 960 reais a 2800 reais. Quase toda a receita obtida nos três primeiros anos de operação foi reinvestida no hotel, até que ele ficasse do jeito que os sócios queriam. Em 2010, quatro anos depois de Guto pisar no estaleiro do Antônio Maria pela primeira vez, ele e Fabi finalmente mudavam-se de volta para São Paulo. No início de 2012, o casal quitou a dívida com João.
EXCELÊNCIA TAMBÉM NA GESTÃO DE RESÍDUOS
O Anavilhanas faz parte da associação Roteiros de Charme, organização sem fins lucrativos que congrega 65 hotéis marcados pela qualidade dos serviços e pela responsabilidade sócio-ambiental. Preocupação com gestão de resíduos e preferência para contratação de mão de obra local (com remuneração acima da média) são algumas das ações que garantem a presença do Anavilhanas neste seleto grupo. Mas talvez não tivesse como ser diferente, até porque o empreendimento precisa da floresta pra funcionar. Preservá-la, portanto, faz parte da alma do negócio. Guto quer companhia:
“Tomara que mais gente se aventure a fazer empreendimentos responsáveis por aqui. A Amazônia agradece”
O casal é pai de Joaquim, 4 anos, e de Francisco, de 1, e tem trabalhado 20 dias por mês de São Paulo, 10 na Amazônia. Sempre que viajam a Novo Airão, levam os pequenos. “O Joaquim já foi mais de 30 vezes para a Amazônia com a gente, mas agora começa a escola e vamos ter que nos alternar”, diz Guto.
Hoje Fabi e Guto olham para trás como quem se espanta consigo mesmo, procurando na própria trajetória algum ingrediente que explique o que faz do sonhador um empreendedor. Fabi arrisca: “A gente não fazia a menor ideia do que estava fazendo, foi tudo na base da tentativa e erro. As pessoas acham que a gente foi corajoso, mas não é coragem não. É falta de juízo”. Mas a Amazônia agradece, Fabi.
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