Há cerca de quatro meses, o capixaba José Ricardo Muniz Ferreira, 48 anos, estreava a presença brasileira no Space Life Sciences Laboratory, da NASA, para falar sobre as possibilidades da aplicação de células-tronco na medicina regenerativa. Esse não foi seu único convite para palestrar sobre o tema (já esteve em Singapura e Paris) nem as células-tronco são aquelas do cordão umbilical. O que está tirando José Ricardo do Brasil e tornando sua startup, a R-Crio, um case internacional, são os dentes de leite. Mais precisamente, a possibilidade de obtenção de cerca de 7 milhões de células-tronco em apenas um dentinho de criança.
Parece a versão científica da fada do dente, e até que não está muito longe disso. Na década de 1960, a ciência fez as primeiras descobertas a respeito das células-tronco adultas (como são chamadas as células-tronco do cordão umbilical) e, anos depois, as agrupou de acordo com sua origem: sanguínea (ou hematopoiéticas) ou de outras partes do corpo (mesenquimais). Desde então, a atenção pareceu estar toda voltada às sanguíneas — até surgir a R-Crio.
A startup é um centro de tecnologia celular que armazena, multiplica e criopreserva células-tronco extraídas de dentes de leite. Este vídeo, narrado por crianças, é didático e conta que essas células-tronco podem ajudar na regeneração de músculos, se transformar em cartilagem, músculos e pele, além ser usadas em testes de medicamentos.
José Ricardo é formado em Odontologia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), onde também foi professor, e trabalhou por 20 anos como dentista em sua clínica em Vitória (ES). Mas, de acordo com o próprio odontologista, não há relação direta entre os dentinhos de leite do antigo consultório e os de agora, da R-Crio:
“Chegar na célula-tronco do dente de leite foi uma grande coincidência, não tem a ver com o fato de eu ser dentista. Eu estava estudando medicina regenerativa”
Ele conta que o caminho se deu por meio de sua linha de pesquisa no mestrado e no doutorado, na área de Engenharia de Biomateriais, que buscava desenvolver materiais que permitissem a regeneração óssea e, consequentemente, melhorassem a reabilitação de pacientes que têm perda desse tecido.
“A busca por procedimentos regenerativos move o mundo porque as doenças degenerativas, como câncer, cardíacas, autoimunes e tantas outras, hoje, são prevalentes mundialmente. A medicina regenerativa cria instrumentos de controle e prevenção dessas doenças e a célula-tronco é uma de suas vias”, diz.
Durante sua pesquisa acadêmica, ele foi buscando referências, dentro e fora do Brasil. Na Universidade de São Paulo, conheceu a professora Maria Rita Bueno, pesquisadora de destaque no segmento de células-tronco e Roberto Fanganiello, biólogo e PhD em Genética Humana pela USP e por Yale, hoje consultor científico da R-Crio. Juntos, começaram a desenvolver trabalhos que desembocaram no desenho do processo de coleta de dente de leite, isolamento de suas células-tronco e multiplicação dessas células. “Ou seja, desenhamos todo o processo que é desenvolvido e realizado hoje na R-Crio”. O próximo passo foi a obtenção da patente, em 2013. Já a operação comercial começou em outubro do ano passado, quando saiu a licença da Anvisa.
O QUE A R-CRIO FAZ (E NÃO FAZ)
A R-Crio é um Centro de Tecnologia Celular (CTC), o que significa ter licença para processar, isolar e multiplicar células em laboratório e não apenas armazená-las (como nos laboratórios de sangue, por exemplo). A esta licença também estão ligados os dentistas que querem trabalhar com células-tronco e que, obrigatoriamente, têm de se credenciar a um CTC. Cerca de dois mil desses profissionais já estão credenciados à R-Crio (que também os capacita) e sua participação no processo é fundamental: extrair o dente da criança preservando seu valor (a boca é a parte mais contaminada do corpo, com mais de 500 espécies de bactérias) e obedecer a um protocolo de armazenamento (meio de cultura com antibiótico e com controle de temperatura).
José Ricardo conta que, a partir da extração, o dente tem até 48 horas para chegar à R-Crio, responsável por esse traslado. “Temos um processo logístico para transporte de material biológico em condição adequada. Não é complexo, mas é necessário que se cumpra o protocolo.”
Ou seja, a R-Crio não extrai o dente mas, sim, a sua polpa, a parte que fica no meio, tem cor vermelha e é viva (a que é retirada em tratamentos de canal, “matando” o dente). A partir daí, as células são isoladas e submetidas a diferentes testes (para ver se estão geneticamente íntegras e se o potencial para se diferenciarem e se multiplicarem estão preservados, por exemplo). Outro teste feito, o de esterilidade, checa se há algum ponto de contaminação, o que baixa o número de células-tronco ou as invalida. “É necessário que o dentinho tenha um terço de raiz ainda presente para garantir um volume de células satisfatório, com qualidade”, fala José Ricardo.
Quer dizer, diferentemente do que acontece com a maioria dos dentes de leite — que ficam moles até caírem sozinhos ou são puxados em casa com “técnicas” como linha de costura amarrada à maçaneta da porta — os dentinhos doadores de células-tronco devem ser extraídos pelo dentista. Não que essa criança nunca vá conhecer a fada do dente — só um dentinho é necessário para o procedimento. Os outros cerca de 19 podem ir para debaixo do travesseiro (e até passar pela tortura da porta). A extração profissional do dente é considerada o primeiro dia de um processo que leva aproximadamente 90, e na qual se encerra a participação da criança.
O restante do tempo compreende os procedimentos já citados acima (isolamento, multiplicação, obtenção das células, qualificação) e a criopreservação (conservação das células-tronco em temperaturas que chegam a quase 200º C negativos). Esse serviço custa 2.980 reais. “O valor inclui a coleta do dente com exame sorológico prévio. O custo da extração é da R-Crio porque essa etapa do processo faz parte de um terço da patente”, conta José Ricardo. Já no plano Premium, que custa 6.980 reais, é feita também análise genômica (mapeamento genético) a partir da saliva — que identifica perfil genético individual para esportes, nutrição, saúde e resposta a medicamento. Em ambos os planos é preciso pagar 735 reais de anualidade, pelo armazenamento do material.
INVESTINDO EM DINHEIRO E EM INFORMAÇÃO
Entre o projeto no papel e o início das operações, corriam o ano de 2014 e José Ricardo em busca de investimento. No próprio meio acadêmico encontrou dois investidores-anjo: Alexandre Serafim e Brunella Bumachar, ex-professores aposentados da UFES. Dentre os 20 milhões de reais colocados por eles na R-Crio, metade pagou equipamentos e infraestrutura e a outra metade foi destinada a fluxo de caixa, o que inclui o pagamento da equipe. Ainda não houve retorno do investimento mas a projeção de faturamento para este ano é de 9 milhões de reais e a meta para o número de células-tronco armazenadas é de 2 000 (o banco de células-tronco da R-Crio tem a capacidade de armazenar 220 mil amostras).
Há, também, investimento de tempo e energia em informar um número cada vez maior de pessoas sobre o trabalho da R-Crio. José Ricardo fala a respeito:
“O grande desafio, quando se fala em inovação, é disseminar o conhecimento. Trabalhamos com ciência vanguarda e estamos, de fato, na vanguarda”
Ele conta que a primeira descrição feita no mundo sobre extração e o isolamento de célula-tronco da polpa do dente de leite foi obra de um grupo americano, em 2003. “Em 2005 eu já trabalhava com os arcabouços disso, que só dez anos depois culminariam na R-Crio.”
José Ricardo enumera os três canais que usa em sua missão de disseminar esse conhecimento (e, por que não, seu negócio): o primeiro são os dentistas e médicos que homologam o processo, fundamentando-o cientificamente; o segundo canal são os clientes diretos, que procuram o serviço e para os quais a informação tem que ser clara e sem jargões; e o terceiro canal é a mídia, pois são os jornalistas que traduzam a inovação para a população. “É isso que estamos fazendo agora”, diz, ciente de que não existe mágica. Ou que a Fada do Dente já anda bem ocupada.
O Brasil tem muita pesquisa científica, mas poucas startups que transformam esse conhecimento em inovação. Saiba como a Vesper Ventures quer turbinar biotechs que aplicam a engenharia genética a serviço da medicina e da agricultura.
A obesidade atinge mais de 40 milhões de brasileiros. Saiba como Fernando Vilela superou o desafio de perder peso e, de quebra, se aliou ao seu médico nutrólogo e fundou a Liti, uma solução online para quem quer emagrecer com saúde.
A startup goiana aplica engenharia genética, inteligência artificial e softwares de bioinformática para criar novas moléculas que poderão ser patenteadas e licenciadas à indústria farmacêutica. Em um ano, foram oito produtos descobertos, incluindo três quimioterápicos de baixo efeito colateral.