O mundo começou a ouvir falar em negócios sociais a partir de 2007, quando o economista Muhammad Yunus, natural de Bangladesh e ganhador do Nobel da Paz no ano anterior, publicou o livro Criando um negócio social.
Yunus e sua obra inspiraram muita gente. Uma dessas pessoas é a alemã Saskia Bruysten, 42. Ela é a cofundadora e CEO da Yunus Social Business, empresa que apoia, financia e treina empreendedores sociais, canalizando o poder dos negócios para enfrentar a miséria e a crise climática.
Saskia conheceu Yunus em Londres, em 2008, durante uma palestra. Ficou tão impactada que, meses depois, deixou a consultoria BCG, onde estava há cinco anos, para trabalhar no The Grameen Creative Lab, laboratório de eventos e projetos do professor Yunus para a divulgação do então novo conceito de negócio social, que Saskia ajudaria a popularizar e pôr à prova.
Três anos depois, ela e Sophie Eisenmann resolveram criar uma outra empresa, também sob as bênçãos de Yunus, para passar da teoria à prática. Nascia assim o Yunus Social Business.
Com dez anos de atividade, a organização alavanca negócios tanto de empreendedores (até agora são 70 iniciativas no portfólio) quanto dentro de corporações (globalmente, são 60 projetos) e também via uma dezena de joint ventures – entre elas com Danone em Bangladesh, McCain na Colômbia e FIFCO na Costa Rica. Isso sem contar os mais de 2 mil empreendedores acelerados em programas capitaneados pela YSB.
A Yunus Social Business está presente em cinco países – Brasil (desde 2013), Colômbia, Índia, Quênia e Uganda –, onde mantém fundos próprios de venture capital para financiar projetos. O orçamento global da organização é de 12 milhões de euros; a estrutura montada por Saskia já conta com 70 funcionários ao redor do mundo.
Em janeiro, no Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, a YSB lançou, em conjunto com a BCG, o relatório “O manual do Procurement de Impacto Socioambiental” (baixe aqui). O documento defende que grandes corporações precisam aderir à compra social – ou seja, a aquisição de produtos ou serviços de fornecedores que priorizem uma agenda de impacto socioambiental – se quisermos alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU.
Leia a seguir a conversa de Saskia Bruysten com o Draft:
Como você descreveria seu ambiente familiar em termos de valores educacionais, morais e políticos? A consciência social foi um tópico de conversa presente?
Meus pais são de classe média. Meu pai trabalhava em uma grande empresa e se fez do nada. Ele nasceu em 1939, quando a Segunda Guerra começou.
No fim da guerra, meu pai ainda morava em Dresden, que se tornou parte da Alemanha Oriental, e só fugiu de lá em 1951, antes da construção do muro [de Berlim]. Como Dresden já estava sob ocupação russa, ele sentiu o começo do que era viver em uma economia regulada. Ele cresceu sem pai e, basicamente, partiu do nada
Minha mãe é canadense, o que é importante, porque cresci em uma família internacional. Minha vida não era [apenas] a Alemanha… existia um mundo lá fora.
E a segunda coisa é que minha mãe era uma bailarina clássica profissional… ela era tão boa que ganhou uma bolsa de estudos da Royal Ballet School, em Londres, e foi para lá estudar aos 16 anos. E, claro, há o elemento de incrível disciplina e trabalho duro. Acho que minha família definitivamente me moldou.
Além disso, crescer em um país como a Alemanha também é um fator importante porque havia no meu país o “capitalismo normal” [na Alemanha Ocidental] na área ao redor de Frankfurt, onde eu morava, e havia a economia planificada da Alemanha Oriental. Meu país foi separado durante dois terços da minha vida.
Viver e crescer naquele ambiente certamente foi relevante para mim. Mas eu acreditava no que chamamos de Economia Social de Mercado, que é uma espécie de modelo alemão de capitalismo – em vez do modelo americano de capitalismo, que tem tudo a ver com a maximização do valor do acionista
Meus pais não eram particularmente super ativos socialmente, não faziam toneladas de trabalho social… Mas o aspecto do trabalho duro era, definitivamente, muito parte do meu DNA.
Você se reconhece como ativista social?
Eu não me vejo como uma ativista social, porque, para mim, um ativista é alguém que reclama da situação, mas, depois, não trabalha na solução.
Os ativistas são muito importantes, mas me identifico mesmo como empreendedora social, ou de negócios sociais. Porque não sou do tipo que fica só falando do problema… sou eu que sempre chego a uma solução
Quando descobri que seria uma empreendedora social? Para ser honesta, demorou um longo tempo… Sou formada em Economia & Negócios, trabalhei em uma empresa de consultoria no mundo comercial hardcore normal. Aos 20 e poucos anos, foi a primeira vez que me perguntei: “O que vou fazer da minha vida?”
Naquela época, viajei por todo o mundo, vi diferentes partes e percebi que meu tipo de educação não era normal.
Nessa fase, encontrei o professor Yunus em uma conferência em que ele falou sobre negócios sociais. Foi a primeira vez que pensei: “Meu Deus, é possível combinar as questões sociais – ou a solução de problemas – com o negócio! Isso seria tão legal de fazer”.
Isso foi há 14 anos, em 2008 – quando o negócio social não era muito conhecido. Não havia pessoas por aí falando sobre investimento de impacto… isso simplesmente não existia naquela fase.
E foi um “momento eureca”, em que percebi que você pode usar o poder dos negócios, mas você pode também resolver problemas – em vez de apenas “usar a sociedade” para ganhar dinheiro
Mas não me vi logo como uma empreendedora. Só com o tempo me tornei uma, porque não havia trabalho que eu pudesse aceitar no setor. Não tive escolha: se eu quisesse fazer isso, tinha de fundar uma empresa.
No início da carreira, você trabalhou na consultoria BCG por cinco anos em Munique e Nova York. Que lições você ainda carrega desse período?
Foi um período de formação. Primeiro, porque trabalhei com pessoas extremamente inteligentes e aprendi muito. Segundo, porque quando você estuda administração ou mesmo economia, você ainda não tem a menor ideia sobre negócios… quando você trabalha em consultoria por cinco anos, [aí sim] você entende o interior das empresas e como as decisões são tomadas.
Esse tempo também me permitiu – em uma idade muito jovem – falar com o nível mais alto dessas empresas, que geralmente são a elite global. O CEO de uma grande empresa é a elite global… e isso me ajudou, logo de cara, a não ter medo de autoridade, da alta hierarquia
Eu era uma consultora de gestão. Nessa posição, você percebe que essas pessoas são inteligentes, mas – como dizemos em alemão – “elas também apenas fervem água”. O que significa que elas estão descobrindo à medida que avançam.
Isso me ajudou a entender que eu também tinha capacidade. E aprendi a ser incrivelmente estruturada. Tipo: esse é o problema; parece que é insolúvel, mas se você o quebrar em muitas pequenas partes, é possível resolvê-lo.
O que realmente me ajudou não foram apenas as habilidades que aprendi, mas também ser respeitada por pessoas que me conheciam apenas por causa do meu currículo.
Quando você começa um negócio social, as pessoas dizem: “Lá vem a sonhadora”… O fato de eu ter trabalhado na BCG e já ter isso no meu currículo me ajudou a entrar nas conversas em outro patamar: “Ela não pode ser tão burra se trabalhou para eles!”
Como uma mulher jovem fundadora, ser imediatamente respeitada – mais do que normalmente seria o caso – era muito importante.
Você disse anteriormente que conheceu o professor Muhammad Yunus em 2008, na LSE, na Inglaterra. Como você veio a trabalhar com ele no mesmo ano no The Grameen Creative Lab, onde ficou por três anos?
Eu o ouvi falar na LSE e achei super interessante… Nesse ponto, estava tentando descobrir o que eu faria depois do BCG e criei algo chamado Arquivo do Futuro da Saskia, onde escrevia todas as opções do que poderia fazer… Eu estava olhando algumas opções, mas não estava super empolgada com nada.
Quando ouvi Yunus falar de negócio social, fez tanto sentido! Ele também falou sobre a joint venture que criara com a Danone para produzir iogurte enriquecido com micronutrientes. Achei muito legal – e achei que eu conseguiria trazer meus clientes corporativos da BCG para fazer algo do tipo.
Se eu achava que ia fazer isso pelos próximos 14 anos da minha vida? Não! Basicamente, o que eu pensei foi em me envolver nisso. Eu pensava: “Vou tentar por um ano. Se for legal e eu conseguir fazer funcionar, eu continuo. Caso contrário, sempre posso voltar a ser a chefe de estratégia de alguma grande corporação”. Esse foi meu mindset
O que aconteceu foi: Yunus terminou de falar; fui até ele e dei-lhe o meu cartão. Mais tarde, escrevi-lhe um e-mail e ele respondeu. Em paralelo, muito aleatoriamente, um amigo meu, Bobby, me convidou para ir até Berlim e eu aceitei. E através de vários outros canais, ele estava gerenciando a viagem de Yunus a Berlim, que aconteceria alguns meses depois do evento em Londres.
Então, eu me encontrei com Yunus duas vezes em um curto período de tempo. Parecia um sinal. Yunus me apresentou a esse outro alemão, Hans Reitz, que também queria trabalhar com o professor, e sugeriu que fizéssemos algo juntos.
Foi assim que surgiu a ideia do The Grameen Creative Lab – GCL. Era para ser uma espécie de plataforma para quando alguém falasse com Yunus e estivesse interessado em descobrir mais sobre negócios sociais, o GCL entrasse em ação. A gente ajudaria a criar uma ideia e seríamos um lugar na Europa onde as pessoas pudessem descobrir mais sobre negócios sociais
Hans Reitz veio da área de eventos, por isso começamos basicamente no GCL o Global Social Business Summit, que reúne pessoas em torno do tema. Iniciamos também outro tipo de conferência hoje conhecida como Dia dos Negócios Sociais, que é sempre no aniversário de Yunus, e começamos alguns primeiros projetos com empresas.
Você diria que o principal objetivo do laboratório era divulgar os negócios sociais… uma espécie de jornada educacional após o segundo livro lançado em 2007, Criando um negócio social?
Sim, exatamente, o The Grameen Creative Lab era – e ainda é – um lugar para espalhar a ideia de negócios sociais e experimentar coisas novas.
Depois de dois anos lá, percebi que queria fazer algo um pouco mais estruturado e não apenas criativo. Eu disse a Hans que ele poderia continuar e eu queria me concentrar em realmente implementar negócios sociais.
Por que fizemos o spin-off? Havia duas visões diferentes entre Hans e o que eu queria fazer para apoiar os negócios sociais no mundo.
Ele não estava tão interessado na implementação, queria levar a mensagem adiante. Eu sentia que se quiséssemos mostrar que o negócio social era um modelo viável no futuro, precisávamos criar exemplos concretos
Me juntei a uma amiga, Sophie Eisenmann, que também tinha sido voluntária no GCL, e propus: “Por que não montamos essa empresa que investe em negócios sociais, trabalha com grandes empresas e realmente foca na implementação?”
Então, saí do Grameen Creative Lab e criei o Yunus Social Business. Isso já faz mais de dez anos.
Emocionalmente falando, a decisão de abrir um negócio veio fácil para você? Suponho que existam diferenças entre ser co-CEO do The Grameen Creative Lab e ser uma fundadora de um negócio como o YSB?
Definitivamente, houve aquele momento de ficar um pouco assustada no começo, porque se tudo desse errado, era o meu dinheiro, meu recurso – e eu não tinha muito.
Nós “literalmente” investimos 12 500 euros juntas, para criar esta entidade, porque, na Alemanha, você precisa de 25 mil euros para criar uma entidade – mas você tem que pagar metade disso. Pagamos o mínimo e criamos esta primeira empresa.
Na época não tínhamos grandes doadores. Definitivamente, houve um momento de “será que vamos conseguir isso?” Mas já estávamos nesse setor maluco e sentimos que era a coisa certa a fazer
Você se aprofunda cada vez mais em algo e então pensa que é normal… não é mais loucura (risos).
Conte-me sobre esse começo. Qual foi o primeiro passo: criar um fundo de venture capital; criar um projeto corporativo; ou encontrar uma startup social para acelerar? Como vocês começaram exatamente e quais foram os principais desafios?
Nosso plano de negócios dizia que queríamos criar negócios sociais e que havia várias maneiras de fazer isso – poderíamos trabalhar com empresas e ajudá-las a criar negócios sociais; poderíamos prestar consultoria em universidades e ajudá-las a iniciar negócios sociais; poderíamos prestar consultoria a ONGs; poderíamos prestar consultoria a governos.
A ideia principal era que iríamos prestar consultoria a outras pessoas para configurar negócios. Esse deveria ser o nosso modelo de negócios e queríamos, nós mesmas, sermos um negócio social. Não sabíamos de imediato que haveria necessariamente um fundo.
Tivemos alguns pequenos projetos com Khazanah Nasional Berhad – o fundo soberano do governo da Malásia –, com Marks & Spencer e algumas universidades onde fizemos alguns trabalhos, o que pagou as contas dos primeiros meses.
Então, conseguimos um contrato com a SAP para começar algo no Haiti. Também conseguimos um contrato com o governo albanês para criar o Movimento Holístico de Negócios Sociais, que levou negócios para a Albânia. Foi assim que começamos… com esses contratos onde ajudaríamos outras pessoas a criar negócios sociais
Assim que começamos a ter equipes nos países, percebemos que para construir negócios sociais era preciso ter financiamento. Só então vimos que era uma necessidade real porque ninguém fazia esse tipo de investimento.
Foi assim que acabamos criando pools de financiamento para financiar essas empresas. E foi aí que nós, além do nosso negócio social normal, tivemos que criar uma organização sem fins lucrativos para levantar esses recursos.
Quando você pergunta sobre desafios… éramos um negócio social, então as pessoas diziam: “Ótimo, eu quero investir em você. Qual é o meu retorno?” Eles esperavam grandes retornos que não poderíamos fornecer, então sugerimos que eles nos fizessem doações. Aí disseram: “Mas você não é uma instituição de caridade!”
Estávamos basicamente presos entre ser um negócio normal e ter que pagar rendimentos significativos – ou ser uma instituição de caridade ou sem fins lucrativos para receber doações. Ganhar receitas não se encaixava. E também não nos enquadrávamos [para receber aportes] em agências de desenvolvimento e grandes fundações.
Não havia nenhuma categoria de financiamento para negócios sociais. Ninguém queria fazer isso. Éramos como um pino quadrado em um buraco redondo
Onde quer que fôssemos, antes de tudo, tínhamos que explicar o que era negócio social. Esses foram os grandes desafios no início. Hoje, empreendedorismo social é algo conhecido. Existem fundações que não fazem nada além de financiar esses tipos de organizações. Mas naquela época…
Isso quer dizer que existem três entidades diferentes da YSB: negócio social, financiamento e projetos corporativo? Como funciona o modelo hoje em dia?
É um pouco diferente em cada país, mas, em poucas palavras, nós basicamente temos o braço corporativo pelo qual fazemos parceria com corporações.
Ali, nosso modelo de negócios são os honorários de consultoria. É o que, por exemplo, Tulio Notini [diretor da Yunus Corporate Innovation no Brasil] faz… ajuda grandes empresas como Grupo Boticário, Raia Drogasil, Reckitt Benckiser, Sicredi, McCain Foods, Klabin e Quilmes a criar mais impacto social através de seu core business
Temos outro braço pelo qual investimos em negócios sociais. Ali temos dois tipos de fontes de financiamento: doações que transformamos em um empréstimo para os negócios sociais; ou investidores que aportam em fundos – como o que temos no Brasil. Emprestamos para os negócios sociais, os negócios sociais nos reembolsam e devolvemos aos investidores.
Na linha de frente para os negócios sociais, nós apenas concedemos empréstimos, mas a origem do dinheiro difere de país para país e de estrutura legal para estrutura legal.
A sede da YSB fica em Berlim. Quando vocês decidiram ir para outros países, expandir escritórios?
Desde o primeiro dia, basicamente, porque nunca trabalhamos na Alemanha… Quer dizer, fizemos alguns projetos corporativos aqui [em Berlim, onde Saskia vive] também, mas nosso trabalho sempre seria internacional.
Fomos criados basicamente com a intenção de exportar negócios sociais de Bangladesh para outros países. É por isso que nós, como YSB, não nos concentramos em Bangladesh, mas sim em outros países, porque em Bangladesh eles não precisavam de nós.
Yunus já tinha criado o Grameen Bank e os 30 negócios sociais de grande escala lá. O que quer que adicionássemos seria pequeno. É por isso que, desde o início, nossa missão era exportar o modelo de Bangladesh para outros países
Estávamos sediados na Alemanha só porque eu e Sophie somos alemãs.
Você escolheu em quais países YSB estaria? Como isso aconteceu?
Aleatoriamente… serei honesta com você. O início foi muito bootstrapping. Não tínhamos uma dotação de 5 milhões e poderíamos construir essa bela estratégia de como iríamos conquistar o mundo com negócios sociais.
Yunus não nos deu dinheiro porque ele havia criado todas aquelas empresas e Bangladesh precisa de cada centavo. Yunus sempre dizia: “Estou aqui. Vou dar meu tempo, vou aonde quer que você queira que eu vá… em qualquer lugar. Sempre que você quiser que eu dê sugestões, podemos discutir, vou dar meu tempo – mas não posso te dar dinheiro porque preciso disso para Bangladesh”.
Por isso, estávamos sozinhas em relação ao financiamento. Em outras palavras, não sentamos e pensamos: “este é o mundo, como vamos salvar o mundo e por onde vamos começar?” Era mais como: onde vamos conseguir um contrato?
Por exemplo, o primeiro-ministro da Albânia escrevia para Yunus e ele vinha pra gente: “Saskia e equipe: vão fazer algo na Albânia”. Ou íamos a uma conferência, conhecíamos alguém da Colômbia e eles nos convidavam para ir lá ajudá-los lá e nós íamos.
E um dia, recebemos um convite do Banco do Brasil para ir lá falar sobre negócios sociais. Paralelamente, um outro empresário chamado Rogério Oliveira tinha ido a um Global Social Business Summit e dito que queria fazer algo parecido conosco no Brasil. Foi assim que chegamos aí [no Brasil]…
Depois de cinco anos de jornada, estávamos em 12 países. Esse foi o momento em que percebemos que, em alguns, estávamos realmente criando um impacto significativo; mas em outros, a jornada era muito, muito mais difícil – e nosso impacto por dólar investido foi menor
E foi aí que tomamos a decisão de focar em cinco países. Criamos vários critérios do que um país precisava para sermos bem-sucedidos lá, porque realmente aprendemos. E foi assim que acabamos nos cinco países onde estamos ativos agora.
Quais foram os critérios para escolher os países em que vocês ficariam?
O primeiro é nível de pobreza… em algum momento decidimos que queríamos focar particularmente na pobreza, porque é claro que os negócios sociais também podem ser para o meio ambiente ou outras questões.
A pobreza é um dos critérios, mas também precisamos de um sistema econômico que funcione minimamente… No início, estávamos no Haiti, mas é uma economia muito, muito quebrada, impulsionada por ONGs e constantemente exposta a desastres naturais… Infelizmente, percebemos que seria muito difícil termos sucesso a longo prazo lá
Ainda temos um portfólio de algumas empresas ativas funcionando [no Haiti], mas toda vez que passava um furacão, tudo o que construímos desmoronava novamente. Então, entendemos que é sensato procurar por uma economia um tanto estável.
E também pensamos que o país precisa ter um tamanho relevante. Por exemplo, a Albânia é superpequena, tem 4 milhões de pessoas e um tipo de economia comunista em alguns aspectos. E percebemos que, lá, o empreendedorismo não é realmente algo de que as pessoas gostam…
Então, pensamos: onde podemos criar o maior impacto por dólar investido? Ou seja, tinham que ser países maiores, relativamente pobres, um pouco alinhados com a filosofia do altruísmo eficaz, com um pouco de estabilidade… zonas de guerra não são bons lugares para criar negócios, porque vai ser muito difícil atrair investidores e manter o negócio operando
E, claro, também tinha de ser um lugar onde já estávamos, porque, naquela fase, não começaríamos inteiramente do zero.
Que mudanças reais e significativas você viu nos últimos dois anos, quando os compromissos e práticas ESG se tornaram pontos de interesse mais fortes?
Eu tenho ido há 12 anos ao Fórum Econômico Mundial, onde a elite global se reúne para falar sobre os tópicos relevantes na agenda do mundo. É terrível dizer isso, mas é sob a perspectiva da elite que muitos tópicos são definidos.
Dez anos atrás, essas coisas não eram realmente “relevantes”. Havia alguns empreendedores sociais, porque Klaus Schwab, o fundador do Fórum Econômico Mundial, foi inspirado por Yunus e criou a Schwab Foundation for Social Entrepreneurship para apoiar empreendedores sociais – mas eles estavam realmente à margem.
E quando conversávamos com as empresas lá, elas achavam o assunto superlegal, falavam sobre uma fundação corporativa que tinham ou nos diziam que o departamento de Responsabilidade Social Corporativa poderia conversar conosco… E muitas vezes não ouvíamos mais nada [daquela empresa].
Hoje em dia, uma vez que a sigla ESG está na moda, as pessoas realmente têm compromissos significativos como: “Quero que todas as pessoas na minha cadeia de valor ganhem salários dignos; quero ser zero emissões líquidas de carbono até o ano X”
E se esses compromissos existirem, as empresas eventualmente terão que agir de acordo com eles. Elas podem levar alguns anos a mais, ainda podem encontrar uma boa solução de greenwashing no meio do caminho…, mas uma hora não terão mais escolha a não ser agir, porque jornalistas e os órgãos reguladores irão responsabilizá-las.
Nos últimos três anos foram feitos cada vez mais compromissos positivos – principalmente com o planeta e menos com as pessoas –, o que dá-me a esperança de que, lenta mas seguramente, eles serão implementados.
Vejo uma série de razões. Claro que existem movimentos populares como Greve pelo Clima [iniciado por Greta Thunberg], mas existe [também] mais transparência para que os consumidores entendam de onde vêm seus produtos e serviços. A geração Z e os millennials se preocupam cada vez mais com esses tópicos; a Covid-19 foi outro forte impulso: as pessoas perceberam que algo está errado com o mundo, com a economia.
O Financial Times começou, há dois anos, a dar grande foco a esses tópicos, o que acho muito relevante: se eles mudam a forma como falam sobre esses temas, faz diferença para muitos tomadores de decisão.
Há uma série de tendências se movendo nessa direção de que o ESG é inevitável para as empresas. Estou feliz por isso estar na agenda…, mas não é suficiente apenas olhar para o risco que o ambiente representa para o seu modelo de negócio! Devemos começar a olhar para o outro lado: “que coisas ruins sua empresa está fazendo com o mundo?”
E também: “Como você realmente vai parar de machucar o mundo e machucar as pessoas? Como você vai começar a resolver esses problemas e criar novas oportunidades de negócios para si mesmo, resolvendo problemas, em vez de criar mais problemas?”
Isso me dá a impressão de que você gosta da ideia de reunir o meio ambiente e o social do ESG. Combinar essas duas esferas ainda parece ser um desafio. Qual é a sua opinião sobre isso?
Se uma das três letras tem dominado, tem sido o E. Todo mundo está constantemente falando sobre o meio ambiente, porque tem havido muito movimento em torno disso. Mas, também, porque há uma moeda única no espaço ambiental com a qual todos concordam: as emissões de CO2.
Existem mecanismos de crédito de carbono, então o mundo descobriu como medir e como ajudar o meio ambiente… e há um KPI que todos reconhecem. É por isso que o E, o fator ambiental, tem sido a força motriz, e aquele [fator] em que a maioria das empresas conseguiu se comprometer com algo.
O que estamos discutindo no YSB é: ESG é super importante e concordamos plenamente – mas todos estamos esquecendo o S [de Social].
Acho que em um país como o Brasil isso fica mais claro, porque você vê como as pessoas vivem nas favelas etc. Às vezes, as pessoas aqui na Europa vivem em suas torres de marfim e nunca viram a pobreza. Então, é por isso que o meio ambiente é a única coisa com que elas se preocupam
Mas estamos argumentando que o S é muito importante: se você se posicionar no S, essa será uma vantagem competitiva porque todo mundo está falando apenas sobre o E.
O que também estamos argumentando é que você não terá sucesso com o lado ambiental no longo prazo, se não cuidar também dos temas sociais, das repercussões sociais.
Para citar exemplos concretos… Na Alemanha houve o processo de parar todas as usinas de carvão. É claro que milhares de pessoas estão desempregadas, então como você encontra maneiras para elas conseguirem um novo trabalho?
Nos países em que trabalhamos, pessoas pobres cortam árvores para usar a madeira para cozinhar seus alimentos. Isso é terrível para o meio ambiente, mas se as pessoas tiverem alternativas, se tiverem um pouco mais de renda ou se houver fogões acessíveis… não vão cortar a madeira.
Então, o que estamos defendendo é: a dimensão social, o fato de que as pessoas podem realmente contar com uma renda, será um fator chave de sucesso para também podermos alcançar as metas ambientais
Essas duas coisas estão totalmente alinhadas. E você não terá sucesso em salvar o meio ambiente se não salvar as pessoas ao mesmo tempo.
Em relação aos compromissos de redução de emissões de carbono, no Brasil muitas companhias parecem preocupadas com a dificuldade em mensurar as emissões de escopo 3 – as da cadeia de suprimentos. Recentemente, no Fórum Econômico Mundial em Davos, vocês e a BCG lançaram um relatório defendendo compras sociais (a prática de comprar produtos ou serviços de empresas que priorizam uma agenda de impacto socioambiental), um mercado estimado em 500 bilhões de dólares para os próximos 10 anos. Você vê a compra social e seu impacto nas cadeias de suprimentos como uma forma de mesclar o E e o S do ESG?
Essa é definitivamente uma maneira. Acabamos de lançar este relatório em Davos para conscientizar as empresas de que há milhões ou bilhões para compra de papel higiênico, serviços terceirizados de TI, serviços de limpeza… Por que não comprá-los de negócios sociais e criar um grande impacto?
Isso pode ter um efeito tanto em E, S e até em G em alguns casos. E também pertence ao escopo 3 – tudo o que está fora da sua empresa. Muitas vezes, quando pensamos no escopo 3, sempre falamos sobre as emissões de CO2, mas o escopo 3 também diz respeito às pessoas.
O equivalente para as emissões de CO2 no setor social provavelmente será o que chamamos de salário digno… Anteriormente a meta era: “Esta empresa terá zero emissões líquidas de CO2 até X”. Acho que a próxima coisa que as pessoas vão dizer é: “Seremos uma empresa 100% com salário digno até o ano X”
Isso significa que não só pagarão salários dignos aos próprios funcionários, mas também garantirão que todos os fornecedores paguem salários dignos a seus funcionários ou microempreendedores… Mas ainda estamos muito longe disso.
Portanto, é uma maneira massiva de o setor de negócios sociais gerar receitas adicionais – e, assim, poder contratar pessoas mais vulneráveis com um salário melhor.
Como você espera convencer as pequenas empresas a ver a compra social como uma maneira eficaz e lucrativa de fazer negócios?
Em primeiro lugar, há sempre um efeito cascata. Primeiro você precisa convencer os caras realmente grandes, porque quando eles dão o exemplo, os outros vão adotá-lo e isso se torna um novo padrão.
A segunda coisa é que, em termos de efeito economia do gotejamento, os grandes têm fornecedores de médio porte, então vão dizer a eles: “Cara, se você não contratar pessoas vulneráveis ou se você não tem emissão zero, não vou mais comprar de você”. O que significa que os grandes vão colocar os padrões nos médios, que vão colocar nos pequenos.
E então algumas empresas menores crescerão significativamente, porque já estão fazendo coisas boas e haverá mais demanda por elas no futuro. Acho que é assim que podemos fazer, e é por isso que estamos começando com os maiores.
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