Se tem uma coisa que ninguém pode dizer é que Marina Peixoto tem uma vida monótona. Esta mineira de Cataguases, de 46 anos, brinca que já perdeu as contas de quantas vezes mudou a direção de seu trajeto. Ou melhor: virou tudo de cabeça para baixo.
A mais recente de suas montanhas-russas (e, provavelmente, não a última) foi, há um ano, quando deixou sua carreira de executiva de sucesso na Coca-Cola para se tornar diretora-presidente do MOVER (Movimento pela Equidade Racial), grupo composto por um pool de empresas que trabalha contra o racismo corporativo.
“Quando vi que, mais do que estar em uma única empresa, poderia contribuir para impulsionar outras, falei ‘é isso’. Não sei se vai dar certo, mas se eu acredito, eu vou”.
Entre os compromissos do movimento estão, até 2030, desenvolver 10 mil cargos de lideranças negras, gerar três milhões de oportunidades por meio de capacitação e conexão com o mercado de trabalho, e ampliar a conscientização sobre o racismo no país.
Para construir este trabalho, foram feitas várias conversas com lideranças negras, como Adriana Barbosa, do Preta Hub e Cida Bento, do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades). Hoje, 47 empresas fazem parte do movimento, que tem um orçamento de R$ 15 milhões por ano.
O caminho da carreira traçado por Marina, formada em engenharia de produção, carrega uma mistura da vida pessoal e profissional. “A gente aprende de um lado e do outro. Então, o meu propósito de vida e meu estilo de liderança vem muito do que eu também aprendi na minha vida pessoal”.
Na entrevista a seguir, Marina compartilha os aprendizados com a filha, Joana, que tem síndrome de Down, com as mudanças de carreira, e, agora, com o movimento que atua em uma das áreas ESG que precisa urgentemente de mudança de postura: a equidade racial.
NETZERO: Você é graduada em engenharia, mas tem uma carreira que passou por RH, inovação, e agora diversidade. Como essas mudanças foram acontecendo?
MARINA PEIXOTO: Eu tenho uma coisa de tomada de risco e também de fazer o novo. Comecei minha carreira na Petroleo Ipiranga, em uma área de engenharia. Depois tive uma experiência em uma área comercial porque eu queria entender a ciência mais humana por trás dos números, o que fazia uma pessoa escolher um produto A ou B. Foi quando entrei para o mestrado em administração com ênfase em marketing e tive a oportunidade de fazer um intercâmbio na Universidade de Illinois, nos Estados Unidos. Comecei a fazer minha tese lá, sobre a responsabilidade social corporativa e o impacto nas decisões do consumidor. Quando voltei para o Brasil, entrei para a Coca-Cola, numa área ainda financeira, e acabei fazendo a minha tese focada na responsabilidade social e impacto no consumidor voltado para os refrigerantes. Com menos de um ano na Coca, consegui migrar para o marketing e puxei essa pauta também social. Naquela época não se chamava ESG nem sustentabilidade, era Responsabilidade Social Corporativa. Nunca entendi o social como filantropia, e sim como algo que alavanca o negócio. Então, nas diferentes áreas que eu passei na Coca-Cola, como finanças, marketing, RH, comunicação e inovação, tentei trazer esse olhar.
E como você chegou no engajamento com a questão racial?
Em 2019 eu queria muito ter uma experiência internacional pela Coca-Cola e acabei tendo a oportunidade de ir pra Atlanta (Estados Unidos). Trabalhei com o time global de marketing para trazer essa lente de propósito, de impacto, para a empresa. Fui para lá em dezembro de 2019 com minha filha e marido, veio a pandemia, e não conseguimos voltar. Os aeroportos fecharam e eu fiquei morrendo de medo porque minha filha é cardiopata. Estendemos o visto, e acabamos ficando mais seis meses.
Eu estava lá quando o George Floyd foi assassinado e acompanhei de perto a comoção nas ruas, o Black Lives Matter, a prefeita de Atlanta indo pra rua falar. E comecei a estudar mais, ler mais, conversar e percebi que eu precisava ser mais ativa nessa pauta.
Voltei ao Brasil em agosto de 2020 e assumi a área de diversidade e inclusão, que até então eram eram equipes voluntárias puxadas pelas pessoas do RH. Naquele momento comecei a trabalhar um planejamento de diversidades mais estruturado. Queria trazer o mesmo pensamento de negócio para essa área pra não ficar só em palestras e talks, porque aí fica muito na conscientização, mas não vai para a ação.
O projeto MOVER é o resultado desse plano de ação?
Nessa época, a Coca-Cola participou do Movimento Nós, em que se juntou a outras sete empresas (Ambev, Aurora Alimentos, BRF, Grupo Heineken, Mondelez International, Nestlé e PepsiCo) para ajudar o pequeno varejo, que foi o cliente mais afetado com o lockdown imposto pela pandemia. Ali, os CEOs entenderam a força do fazer junto quando se trata de uma agenda pré-competitiva. Desse grupo se formou um grupo de WhatsApp interessado em pensar em outros temas de diversidade. Ficamos nos falando de agosto até novembro, mas ainda sem muito foco.
Quando, em novembro, houve o assassinato do João Alberto aqui no Brasil (João Alberto Silveira Freitas foi espancado e morto em uma unidade do Carrefour em Porto Alegre), resolvemos focar na pauta racial porque, bem ou mal, as empresas estavam conseguindo avançar nas outras pautas e ali havia uma urgência.
Lançamos um compromisso público de sermos agentes de transformação e atuar de forma propositiva e colaborativa no avanço da pauta racial. Depois disso foram seis meses discutindo qual seria o nosso papel nessa luta porque o racismo é estrutural, precisa de soluções estruturantes, e não temos a prepotência de achar que vamos resolver o racismo no Brasil. Mas entendemos que as empresas têm um papel e são parte dessa solução. Fomos ouvir pessoas de dentro das empresas, mas também de fora, porque, nesse grupo, havia pouca representatividade negra. Fizemos uns dois meses de escuta com steakholders do movimento negro para entender onde estava o nosso papel. E dali surgiu o MOVER, um movimento pela equidade racial que nasceu em junho de 2021 já com 45 empresas, o que proporcionou um ganho de escala.
Como você, uma mulher branca, pode estar na liderança de um movimento pela equidade racial?
Eu entendo que não vou ter o protagonismo da dor ou o protagonismo da fala. Mas como aliada, tenho o protagonismo da ação.
Quem me ensinou isso foi a Nina Silva, do movimento Black Money, e também a professora Cida Bento, mostrando que temos que furar a bolha, assim como foi com as mulheres. A gente precisou de homens que estavam em cargos de poder mexendo nas estruturas. Assim as mulheres puderam ascender. Então, temos que dialogar. Não dá pra ser nós contra eles. É todo mundo junto. Inclusão social, ou justiça social, significa todo mundo ter oportunidades. Seja pela experiência pessoal, como uma aliada, ou de diferentes perspectivas, eu sempre tentei ali abraçar todas as causas e usar o poder da comunicação para isso. Meu lugar de falar nunca vai ser de uma pessoa negra. Mas eu tenho o lugar de uma pessoa privilegiada, que chegou em cargos de liderança, que têm poder da influência, da caneta, ou de contato. Então, eu tenho que usar.
Conte um pouco de que forma esta força do enfrentamento vem também da sua maternidade.
Dois meses depois de começar no RH da Coca-Cola, engravidei, e minha vida mudou. Descobri ainda grávida de seis meses que a minha filha, Joana, tinha um problema cardíaco gravíssimo e descobri, na sala de parto, que ela tinha Síndrome de Down. Eu estava sendo mãe pela primeira vez, e já mãe de uma criança atípica. Foi um choque porque nada foi como eu esperava. A questão cardíaca era tão mais grave que eu nem pensei na Síndrome de Down. Passamos os quatro meses de licença maternidade no hospital.
A Joana não conseguia respirar porque ia muito sangue para o pulmão. Eu não conseguia amamentar porque ela desmaiava com a força de sugar. Em todo o tempo, eu acreditava que, mesmo que tivesse menos de 1% de chance, ela iria sobreviver. Hoje, Joana está com 8 anos, e acabei entendendo com essa jornada que o profissional e o pessoal nunca estão isolados porque a gente aprende de um lado e do outro.
Com a minha filha, aprendo mais sobre empatia e, a cada dia, sobre educação inclusiva. Aprendi a gerenciar melhor equipes porque, mesmo depois que saímos do hospital, ela ainda se alimentava por sonda, então tive que ser enfermeira. Eram 24 doses de remédio por dia: e eu e meu marido que manipulávamos. Tive que aprender gestão de tempo e até gestão de time porque tinha minha mãe e a babá que ajudavam. A cardiologista me dizia: “um dia de cada vez. Se você for pensar em tudo que ainda vai ter que fazer, vai surtar”. Não adiantava pensar no coração se ela não conseguia respirar. E isso é o que o Modelo Ágil propõe. Nas metodologias ágeis nas empresas, você tem problemas muito complexos e, se quiser resolver tudo de uma vez, vai virar um poço de ansiedade e não vai conseguir. Tem que quebrar aquele problema por partes, resolver um por vez. Então eu fui aprendendo muito também com essa experiência com ela.
Estas experiências te motivaram na decisão de sair da Coca-Cola?
O que me move é que eu gosto de fazer algo novo, de transformar, e de saber do impacto social. Tentei fazer isso em diversas áreas dentro da Coca-Cola e acho que fui bem sucedida em algumas. E aí, quando o Mover estava crescendo, eu pensei que mais do que fazer na Coca, eu poderia fazer junto com outras empresas com mais poder de impacto. Comecei a me dedicar a esse projeto e, quando vi, já estava mais lá do que cá. Quando decidimos que precisávamos de alguém dedicado integralmente, eu me voluntariei. Conversei muito lá dentro da Coca-Cola, fui fazer terapia e descobri que, desde criança, tenho uma veia de transformar. No fundo, o S do social é o que fala mais forte aqui e desde a adolescência eu fazia muito projeto social voluntário. Quando vi o poder de transformação do MOVER, de contribuir para impulsionar outras empresas, tomei a decisão. Não sabia se ia dar certo, mas quando eu acredito, eu vou. E aí fiz essa mudança.
As empresas estão genuinamente interessadas nessa transformação?
Sim. Existe um interesse genuíno em criar um impacto e acreditar no seu papel. E, pessoalmente, vários CEOs estão olhando para um legado pessoal da sua gestão. Eu vejo o interesse verdadeiro deles de ter uma causa quase que pessoal junto com a causa da empresa que hoje lideram. A gente também precisa entender que essa é uma agenda do mercado financeiro, então vai ser cada vez mais uma cobrança. E a hora que pesa no bolso, acelera ainda mais. Tem também o impulso do próprio consumidor, que vai deixar de comprar de empresas que ainda não entenderam que não basta fazer um produto maravilhoso sem entender o seu papel ou trabalhar isso na sua comunicação.
Acho que tem um impulsionador do próprio mercado consumidor, do próprio mercado financeiro, mas tem uma pauta genuína das empresas de entenderem o seu papel e dos CEOs saberem que é na alta liderança que eles podem contribuir para a transformação nas suas empresas. Empresas são pessoas. E as pessoas que estão ajudando a construir o MOVER estão se transformando.
Qual a diferença entre estar no mundo corporativo e numa ONG?
A empresa tem o poder de transformar porque investe, contrata, promove. Mas a empresa sozinha não muda nada. A gente precisa de políticas públicas, de sociedade civil, de toda articulação. Talvez uma das minhas grandes contribuições seja o “capital ponte”.
Quem sempre foi de ONG, muitas vezes não entende a dor da empresa. E quando você está na empresa, às vezes não entende também a dor do outro lado. Acho que posso contribuir fazendo essa ponte por já ter passado pelo lado das empresas, e por estar ouvindo e aprendendo do lado de cá. Acho que o poder do MOVER também está em unir essas duas perspectivas para a gente tentar de fato impulsionar a transformação.
Na sua visão, qual papel as grandes empresas têm no combate ao racismo?
Para mudar essa realidade, as empresas também têm que mudar seus processos e suas estruturas, começando pela consciência do que é o racismo e do seu papel como empresa. Por isso investimos em treinamentos, em trazer o viés inconsciente para o consciente. Olha o poder da comunicação, o poder das marcas quando trazem outros modelos em suas campanhas, outras narrativas. Imagina o impacto se cada uma das 47 empresas usar suas campanhas com outras narrativas e referências?
Por isso eu falo que o investimento de capital social não é fazer filantropia, mas sim conectar com a área do negócio para transformar na comunicação, na contratação de pessoas, e fornecedores. É assim que se aumenta o poder de influência da cadeia. Imagina se cada uma das 47 empresas trabalhar sua cadeia de fornecedores para que eles também transformem e tragam mais diversidade e inclusão? Empresa não é só para gerar lucro, empresa tem papel social.
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