Aos 34 anos, Raquel Virgínia carrega a bagagem multifacetada. Como cantora e compositora, formou, com Assucena Assucena e Rafael Acerbi, o trio As Baías, que lançou cinco álbuns em seis anos e conquistou duas indicações ao Grammy Latino – em 2019 e 2020, na categoria “Melhor Álbum de Pop Contemporâneo em Língua Portuguesa”.
Além de artista, Raquel é empreendedora. Em 2021, ela usou sua visão e vivência de mulher negra e trans da periferia paulistana para fundar a Nhaí, uma agência de gestão de cultura que se propõe a fomentar e fortalecer a comunidade LGBTQIAP+.
A Nhaí se intitula uma “diversitech” e oferece soluções de inovação e tecnologia com o objetivo de contribuir para que empresas e marcas possam expandir o pilar da diversidade. Entre os clientes, Pepsico, Absolut, Grupo Heineken, Ambev, Converse e Amazon.
O Contaí, um dos seus principais projetos, funciona como uma plataforma de aceleração de negócios de empreendedores negros e da comunidade LGBT, que hoje conta com 300 empreendedores cadastrados. Em junho, rolou em São Paulo a quinta edição do Contaí Summit, reunindo alguns desses empreendedores, virtual ou presencialmente, para trocas de experiências e oxigenação de ideias.
Em conversa com o Draft, Raquel fala sobre o surgimento da Nhaí, os desafios do mercado e a jornada de combater o preconceito e mudar o paradigma que recai sobre a comunidade LGBT, inclusive do ponto de vista do empreendedorismo:
Você conheceu seus colegas de banda na faculdade de História na USP, veio de uma realidade artística, com cinco álbuns produzidos com a banda As Baías e indicações ao Grammy Latino… Sua vida estava focada na música, arte e humanidades. O que a fez desejar entrar para o mundo dos negócios e virar empreendedora?
Ter a banda já foi um exercício muito grande de empreendedorismo da minha parte. Muitas estratégias da banda, que foi independente até metade de sua vida, tiveram essa pegada independente. Então eu tive que empreender muito nesse contexto.
O momento de virada foi quando a Dani Cachich, que na época era diretora de Doritos [e hoje é presidente da divisão Future Beverages and Beyond Beer, da Ambev – leia a nossa Entrevista Draft com ela] e me convidou para ser consultora da marca. Por sinal, sou consultora deles até hoje.
A gente desenvolveu um projeto chamado Doritos Rainbow. Ela me disse que eu tinha uma visão muito legal e que seria uma ótima consultora. Acho que nesse momento o meu olhar mudou, de empreendedora não apenas na arte, mas também na possibilidade de influenciar e cocriar o mercado
Sempre ouvi as pessoas falando do mercado: mercado isso, mercado aquilo… Mas eu pensava: “A gente também tem poder sobre o mercado!”.
Claro que sabemos da existência de monopólios, oligopólios, todos os “polios”. Mas é óbvio que sendo uma mulher negra e trans, eu sempre via brechas para que ele se tornasse mais disruptivo, mais competitivo, com um design mais inclusivo, com uma retórica e narrativa mais inteligente, abrangente e menos excludente.
Isso nos faz levar o mercado brasileiro para outro patamar.
O mercado brasileiro é diferente do resto do mundo na forma como aborda as pautas LGBT? E como você inclui essa fatia de mercado em suas estratégias?
No caso das pessoas LGBT brasileiras, eu creio que a gente tem uma perspectiva muito particular em relação ao resto do mundo, justamente porque no Brasil, de alguma forma, a gente consegue expressar mais a nossa sexualidade e a nossa identidade de gênero.
Por mais que seja um país ainda extremamente violento com a comunidade [LGBT], a gente consegue expressar o que grande parte do mundo não consegue. O Brasil, nesse sentido, pode ser celeiro de novos negócios, inclusive demonstrando que economicamente somos uma potência
Depois desse convite da Dani, meu olhar se abriu nesse sentido e passei a estudar muito sobre o mercado, ler sobre marketing, publicidade, inovação, sobre disruptividade, como ela pode se tornar escalável. E vi que temos um poder de articulação nesse mercado que passou a me atrair.
E essa foi a semente para a construção da Nhaí?
A Nhaí foi uma construção difícil no ponto de vista de modelo de negócio, justamente porque, infelizmente, não existem grandes negócios LGBT no mundo da comunicação e do marketing.
Não temos grandes negócios, temos mais consultorias. E a Nhaí não é uma consultoria.
Hoje, sabemos que, mesmo quando prestamos consultoria, é no sentido de construir um projeto. Começa como consultora, mas desemboca em um projeto. É assim que desenhamos nosso trabalho, somos uma incubadora de projetos nossos ou das empresas.
Mas foi um caminho complexo, pontas precisaram ser juntadas, o que não aconteceu imediatamente. Inclusive, seguimos juntando essas pontas… Mas, agora o modelo está mais explícito, mais lúcido, e o mercado acaba tendo mais lucidez também
No começo, nem a gente sabia o que a gente queria. A gente sabia do nosso propósito, mas não sabíamos a formatação – e o mercado também não sabia, até pelo ineditismo da empresa.
A Nhaí não trabalha com RH, que são geralmente onde consultorias de diversidade são colocadas; raramente falo com esse setor.
Somos uma incubadora de projetos que faz com que o marketing e a comunicação das empresas sejam mais modernas, com uma comunicação inclusiva, assertiva, provocadora, e que tenham uma construção de um legado nesses processos de comunicação
O que mais existia era campanha de orgulho LGBT em junho: “vamos colocar a bandeira e doar para uma ONG”. Mas hoje eu tenho Santander, MercadoLivre, Avon, Doritos, Amstel, por exemplo.
São marcas que não estão comigo só em junho, mas o ano inteiro, porque inovação não é algo para apenas um mês.
Como foi tirar uma agência disruptiva do papel, sem ter muito em quem se espelhar, e ainda mais durante um contexto de pandemia?
A Nhaí foi construída muito naturalmente nesse sentido. Quando você coloca uma pessoa com poder de articulação e essa pessoa é trans e negra, ela com certeza vai trazer uma perspectiva diferente.
Não acho que a Nhai reinventou a roda, muito das discussões que existem dentro da agência são discussões que já são vigentes.
Acho que o que fazemos de diferente é, ao invés de prestar uma consultoria enciclopédica, “o que é o L”, o que é o G, o B, o que pode ou não pode falar – acertar os pronomes, por exemplo –, nós fomos para o story doing. E esse foi o segredo
Queremos entregar experiências para as pessoas, algumas vão assimilar, outras não, e tudo bem. Mas vamos entregar experiências e dentro dessas experiências vamos deixar legado. Vamos parar de pensar tudo de forma filantrópica e pensar em oportunidade de negócio.
Porque quando falamos de pauta LGBT, sobretudo pauta trans, a primeira coisa que as pessoas pensam é o quanto essa comunidade é excluída, apedrejada, violentada. Existem vários paradigmas, mas um deles também é a falta de presença dessa comunidade nos espaços de negócios.
Para muitos isso soa agressivo: como posso pensar em negócios quando nossa comunidade sequer termina o ensino médio? O índice de evasão escolar é enorme. E aí está a contradição, é isso mesmo: se um lado pessoas não terminam o estudo, do outro tem gente da comunidade falando sobre inovação e disruptividade
Alguém vai ter que puxar essa narrativa, do negócio, do business, da lucratividade, da reputação.
Como mulher trans e negra, você tem uma visão de mercado que é diferente, mais ampla. Você acha que isso é uma vantagem na hora de sentar na mesa para negociar, vender, se relacionar com esse empresariado?
Sou uma empreendedora e para mim tudo é uma oportunidade. Até quando é desvantagem, é uma oportunidade. Com certeza isso é um diferencial que entrego. Porque a minha perspectiva não é única, converso e cocrio com um ecossistema de pessoas.
Mas posso contar na palma de uma mão outras empresárias que tem clientes na dimensão que tenho, que assinam carteira de trabalho, que faturam na casa dos milhões, como é o caso da minha empresa. Na realidade, acredito que eu seja a única
Então, acho que a minha perspectiva atual sobre negócios, sobre o empresariado, sobre a comunidade trans, é importante. Eu nem acho que seja uma perspectiva erudita, intelectual, mas uma perspectiva de alguém que está fazendo uma jornada que não é tão simples.
Nos últimos tempos, houve talvez uma diminuição de ações das marcas no universo LGBTQIAP+. Seja na Parada Gay, seja no Mês do Orgulho, as empresas parecem menos engajadas. Concorda? O que explica isso?
Temos vários fatores que explicam isso. Primeiro, há uma diminuição do tema nas altas lideranças. Isso é provado com pesquisas, o tema diversidade diminuiu nas mesas dos CEOs.
Esses tempos alguém disse que dou muita importância para o papel do CEO, mas se não está na mesa deles, não está na mesa de quem decide. E esse tema diminuiu nas altas lideranças, porque diminuiu como um todo.
O tópico da moda agora são as práticas de ESG e pouco se deduz que a prática de sustentabilidade tem forte conexão com a diversidade; esse link raramente é feito e quando é feito, é raso. Poucas pessoas conseguem fazer essa conexão de forma profunda e estratégica.
Outra coisa importante é: tem muita gente militando na mesa de CEO e pouca gente agindo de forma estratégica. Não adianta militar para engenheiro. Se você milita para as altas lideranças, eles vão dizer para você levar o assunto para o RH, ou vão te deixar separar uma hora da semana para debater o tema com os colegas, para você ficar feliz dentro da empresa…
E nem falo isso de forma ácida, porque as redes sociais confundem muito as pessoas, mas existe uma confusão entre militância e linguagem corporativa; e quando você tenta levar militância, o que encontra é a mentalidade de redução de investimento.
Além disso, existe uma onda de conservadorismo muito forte, isso é uma realidade. A guerra da Rússia e Ucrânia também diminuiu investimentos em empresas de todo mundo, principalmente essas marcas que são internacionais.
Do ponto de vista mercadológico, quais são os desafios na coleta de dados e pesquisas que envolvem essa parcela da população?
É difícil porque para ter dados precisamos ter pesquisa, e para pesquisa é preciso verba. O Brasil não investe dinheiro nisso. Mas, para nós é muito importante. Temos inclusive uma parceria com a AlmapBBDO e com o Instituto On The Go para esse fim.
É preciso ter dados dessa fatia de mercado. Foi pelas pesquisas que sabemos que essa comunidade tem a tendência de consumir mais – especificamente 14% mais.
É uma comunidade que viaja mais, que compra mais roupa, mais itens de beleza, tem menos filhos. Mas descobrir tudo isso ainda é muito relativo; quando falamos 14% mais, estamos falando de homens cisgênero, gays, de classe social alta
Temos muitos paradigmas a serem quebrados. Um deles é justamente mostrar para todo mundo que essa é uma parcela da população que só cresce.
Boa parte da geração Z, por exemplo, se autodeclara LGBT. Sabendo disso, a gente vai conquistando algumas narrativas, e publicamente vamos gerando outros comportamentos. Mas é um processo, creio eu, que acontece em ondas.
Esses dados foram apresentados durante o último Contaí Summit, evento de aceleração organizado pela Nhaí. Pode contar um pouco sobre o projeto e o que já conquistaram com ele?
O Contaí é uma das coisas que sou mais apaixonada. É um projeto fenomenal, mas que ainda é um broto.
Esses dias eu andava ansiosa por conta dele, e logo pensei que é um projeto de apenas um ano e já é uma plataforma digital com 300 empreendedores LGBT. Estamos na sexta edição, já saiu no Jornal Nacional, no Fantástico, na Forbes, no Meio & Mensagem, no UOL, na GloboNews, no SBT.
Quando traçamos o arco do projeto, ele é muito bem sucedido. Contudo, estamos falando de uma comunidade que nem se enxerga como empreendedora. Então, estamos fazendo uma construção, tentando convencer essas pessoas que regularizar o negócio é importante, se ver como empresário é importante
Mas acredito que é assim que se faz, a gente está plantando uma semente que colheremos daqui uns anos. Quando isso acontecer, teremos um ecossistema de pessoas que vai conseguir influenciar o mercado de forma muito mais efetiva, com novas referências e com mais técnica.
E quais são seus planos e expectativas para este segundo semestre de 2023, e para 2024?
Esse semestre eu vou estar muito conectada com a ONU, no Pacto Global, uma parte da ONU que é bem empresarial. Lá, conversaremos sobre direitos humanos, meio ambiente, sobre pactos que precisamos fazer como mercado. Além disso, irei para Nova York e depois novamente para a ONU, mas em Genebra, na Suíça.
Em novembro deste ano teremos mais um Contaí, fazemos quatro edições por ano. A gente entende que tem que ter recorrência, porque apenas uma vez por ano se perde muita coisa.
Aprendi participando de eventos corporativos assim que as pessoas se encontram muitas vezes, muitos jantares, muitos eventos, muitas rodas até o negócio ser fechado. Nós precisamos também nos encontrar mais e entender quem é quem para evoluir
Já para 2024, a ideia é continuar expandindo a plataforma digital, mas agora bilíngue, voltada para o público que fala espanhol também. Queremos começar a nos comunicar em uma perspectiva continental. Também teremos um evento ano que vem voltado para o esporte e diversidade no Ibirapuera. Muita coisa vem por aí.
Como fortalecer a inclusão no topo das corporações? Cofundador da Future in Black, Douglas Vidal fala sobre os desafios (e o futuro) da conferência de negócios e carreira protagonizada por pessoas negras que trabalham em grandes empresas.
Líder de Responsabilidade Social Corporativa da IBM, Flávia Freitas fala sobre sua carreira e o desafio de ajudar a preencher a lacuna global de especialistas em inteligência artificial através da capacitação de pessoas de grupos minorizados.
A Diáspora.Black nasceu com foco no turismo como ferramenta antirracista. A empresa sobreviveu à pandemia e às dívidas, diversificou o portfólio com treinamentos corporativos e fatura milhões sem perder de vista sua missão.