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“Senti que havia chegado em um lugar bom quando meu filho mais novo disse: mãe, por que você não escreve um livro sobre a sua vida?”

Neuza Nascimento - 25 out 2024
Neuza Nascimento, escritora, graduanda em jornalismo e colunista do projeto Lupa do Bem.
Neuza Nascimento - 25 out 2024
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Sou Neuza Nascimento, mineira de Santos Dumont, 65 anos, divorciada, tenho dois filhos e uma neta. 

Hoje, sou jornalista quase formada e trabalho para uma agência de comunicação premiada, a Sherlock Communications. Aqui criamos o projeto Lupa do Bem, em que escrevo sobre iniciativas sociais e sobre pessoas que, de alguma forma, se destacam no terceiro setor. Assino a Coluna da Neuza.

Mas nem sempre fui assim. A verdade é que trabalhei em casa alheia por muitos anos, como relatei em meu livro De Saracuruna a Copacabana

Hoje, levo uma vida totalmente diferente da que eu vivia e, por vezes, me pergunto: Como cheguei aqui? E a minha resposta é: Não sei.

Sequer sei como sobrevivi às intempéries pelas quais passei.  Mas lembro exatamente quando senti que havia chegado em um lugar bom. Foi quando meu filho mais novo, Claiton, disse: “Mãe, por que você não escreve um livro sobre a sua vida?”

Não sei descrever ao certo quais foram os meus sentimentos naquele momento em que meu filho desejou que eu escrevesse um livro sobre mim. Mas um deles foi muito claro: orgulho. 

Me senti orgulhosa e decidi que iria seguir em frente, não importando os limites impostos pela vida. Meu primeiro passo foi voltar para escola para fazer o Ensino Médio, já com 51 anos.

E sobre a pergunta de como cheguei aqui? Ela continua no ar.

NA MINHA INFÂNCIA, NOS MUDAMOS PARA O RIO E FOMOS VIVER EM UM BARRACO ONDE O VASO SANITÁRIO ERA SÓ UM BURACO NO ASSOALHO

Comecei a trabalhar com 8 anos, ainda em Minas Gerais, em uma casa onde eu fazia tudo, além de tomar conta de um garoto maior do que eu. 

Da escola só me lembro do quadro negro e da picada da primeira vacina, que tenho a cicatriz até hoje 

Quando eu tinha uns 10 anos, fui para Nova Iguaçu (RJ) para trabalhar em uma segunda casa de família. 

Não me lembro de tudo, mas tenho recordações minhas saindo pela manhã para comprar uma bisnaga e um tablete de margarina e, à noite, eu forrando a roupa de cama no chão atrás de uma mesa para eu dormir. 

Um dia, minha irmã mais velha apareceu para me buscar e eu voltei para casa. Um ano depois voltei para o Rio definitivamente, com minha mãe, uma irmã caçula e um dos irmãos, porque o outro já estava na cidade. 

Na verdade, nós éramos oito mulheres e dois homens, mas as mulheres mais velhas saíram de casa muito cedo para trabalhar. 

Meu pai não veio, ele bebia e às vezes agredia minha mãe. Lembro que ele subiu no caminhão de mudança com uma trouxa de roupas e ela fez com que ele descesse. Ele nunca mais viu minha mãe. 

Viemos para o Rio porque soubemos que a favela de Cordovil ia ser removida, então compraram um barraco para a mamãe. Era realmente um barraco, o telhado era de zinco e, quando ventava, as folhas batiam e era uma barulheira ensurdecedora 

As paredes eram de tábuas, tinha um quarto pequeno com chão de terra batida e um banheiro cujo vaso sanitário era um buraco no assoalho. Dava medo fazer as necessidades ali, olhando a água que “fervia” de tantos bichinhos. Tínhamos a sensação de que iam pular em nossas nádegas; ficávamos o maior tempo possível sem usar.

Não tínhamos televisão, mas os vizinhos tinham e, quando a janela da casa estava aberta, ficávamos nas pontas do pé para ver a novela das oito – na época, Irmãos Coragem.

PERDEMOS TUDO NA ENCHENTE E VIMOS A FAVELA SER REMOVIDA. MINHA MÃE, QUE ESTAVA COM A SAÚDE DEBILITADA, ACABOU MORRENDO

Na favela, eu carregava duas latas de água de 20 litros para encher o barril de casa. Depois, enchia os barris das vizinhas em troca de alguns trocados. 

Estranhamente, não me lembro de brincar. Em Minas, sim, fazíamos bonecas com galhos de árvores e cabelo de milho. Mas aqui no Rio não.

Um dia acordei e, quando me sentei na cama para levantar, pisei na água. Entre pensar e acordar minha irmã e minha mãe, que estavam na mesma cama que eu, já estávamos imersas até os joelhos. 

A água subia rapidamente e, quando saímos, nossos vizinhos já estavam em um palanque. Perdemos o pouco que tínhamos e ficamos só com a roupa do corpo

Depois da enchente, uma tragédia. A favela foi removida e fomos morar em um conjunto habitacional no bairro de Del Castilho, Zona Norte. 

Nessa época, minha mãe já estava com a saúde debilitada. Ela não se adaptou à mudança de alimentação e às altas temperaturas do Rio, entrou em coma diabético e faleceu.

AINDA ADOLESCENTE, TRABALHANDO EM CASAS DE FAMÍLIA, EU SOFRI COM A PRECARIEDADE, A VIOLÊNCIA E UMA TENTATIVA DE ESTUPRO  

Minhas irmãs mais velhas levavam a mim e à caçula para seus empregos em casa alheia. Na época, era normal as empregadas domésticas dormirem nos empregos e folgarem quinzenalmente.  

Quando cheguei na casa onde minha irmã Teresa trabalhava, em Ipanema, na Zona Sul, fui bem recebida pela dona da casa dizendo que eu era uma gracinha e que ia me adotar. 

Eu já tinha 13 anos. Fiquei toda feliz por ela ter gostado de mim, mas não houve adoção: passei a ser mais uma empregada da casa. Teresa era cozinheira e lavadeira, e eu, arrumadeira e copeira. Sem sequer o direito de entrar pela portaria social. 

Nesse período, nunca recebi salário; diziam estarem guardando “na caderneta”. Jamais vi um tostão desse dinheiro. Me entregavam mensalmente só o suficiente para eu comprar coisas de cabelo e absorvente

Uma coisa que tinha de bom nessa casa é que eu podia estudar. E eu estudei. Sempre fui apaixonada por livros. Eu queria mesmo era ser escritora, mas ainda não sabia disso.  

Não sei se cheguei a ficar um ano naquela casa. Fugi, sem falar com ninguém, e saí da escola. Fui trabalhar com um casal árabe. Minha função era tomar conta das crianças e cozinhar. 

Nesse emprego, eu dormia no sofá. A dona da casa saía para jogar à noite e eu ficava sozinha com as crianças. 

Uma noite, enquanto eu dormia, meu patrão chegou e tentou me forçar a ter relações sexuais. Ele não conseguiu porque mordi os braços dele, gritei e as crianças acordaram, aí ele saiu de cima de mim. Mas não sem antes me dizer que eu deveria agradecer por ele me querer 

Não contei nada para a patroa, continuei trabalhando, mas meu sossego acabou. 

Um dia, fui até a escola em que estudava para pegar meu certificado de 5ª série. Quando cheguei, a diretora me perguntou porque eu havia sumido. Falei o que estava acontecendo e ela me chamou para trabalhar na casa dela e continuar a estudar. 

Nessa casa, passei três anos, estudei até a 7ª série do segundo grau. Um amigo me disse que eu estava sendo explorada: eu recebia menos que a metade de um salário-mínimo e fazia a maior parte do serviço da casa, menos passar roupas. 

Toda menina sonha com os 15 anos. Comigo não era diferente. Eu não imaginava uma grande festa, mas intimamente desejava um bolo. 

Na véspera do meu aniversário, ela resolveu inspecionar o banheiro de empregada que só eu usava. Me dei mal. O rejunte dos ladrilhos estavam com lodo e fui pega pela orelha e tive meu rosto esfregado na parede, com ela me chamando de “negrinha” 

Por conta desse episódio não tive no meu bolo de aniversário. E quando completei três anos trabalhando ali, resolvi sair. 

Lembro que nessa época, apesar de ter muitas irmãs, eu era sozinha – elas nem sabiam onde eu estava. 

VOLTAR À ESCOLA ERA UMA QUESTÃO DE HONRA. O ESTUDO ME AJUDOU A ENCONTRAR ESPERANÇA E TRANSFORMAR MINHA VIDA PARA MELHOR

O tempo passou. Trabalhei em muitas casas. 

Sempre sofrendo humilhações, maus tratos, assédio sexual. Comendo o que sobrava da mesa – ou arroz, feijão, ovo.

Fiquei grávida, minhas irmãs não aceitaram; fiquei na Casa da Mãe Sem Lar, localizada em Botafogo, na Zona Sul do Rio. Ali fiquei até ir para a Maternidade Escola, também em Botafogo. 

Tive problemas com a cesárea, por isso me colocaram no isolamento que durou três meses. Durante todo esse período só recebi visitas de uma das minhas irmãs.

Não sei como cheguei aqui, mas sobrevivi. Um tempinho após ter largado a escola, voltei para completar o ginásio – para mim, era uma questão de honra

Ainda trabalhei como doméstica por muitos anos. Chorava sem saber que eu podia mudar de vida.

Hoje, a menina que passou por tudo isso é quem mais tem orgulho de mim.


Neuza Nascimento, 65, é uma profissional experiente no Terceiro Setor e na escrita jornalística. Ela criou e dirigiu a ONG CIACAC por 15 anos, além de realizar cursos voltados para o setor e atuar como pesquisadora de campo pelo IBASE. Hoje, é escritora, graduanda em Jornalismo e colunista no Portal Lupa do Bem, em que entrevista projetos sociais semanalmente na “Coluna da Neuza”.
 

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