Valinhos fica no interior de São Paulo, a uns 80 quilômetros da capital (e a cerca de 10 km de Campinas). Bem longe do mar, portanto. Mas era com o mar que Mathias Lessmann, 34, e Miguel Arasaki, 35, sonhavam a semana toda, durante a adolescência, enquanto estudavam em uma escola local.
Mathias lembra que, de busão ou de carona, desde moleques eles davam um jeito de descer, sempre que podiam, para o litoral norte, onde pegavam onda (e às vezes acampavam) em praias como Maresias, Cambury, Barra do Sahy, Baleia… Todas pertencentes ao município de São Sebastião.
“O que mais nos ligou na época foi o surfe: por causa dele a gente viajava muito juntos. Tínhamos 14, 15 anos. No fim de semana a gente juntava os amigos e ia [para a praia]”
O tempo passou e cada um tomou seu rumo, deixando Valinhos (e o Brasil) para trás. Foram se reencontrar anos mais tarde. Hoje, os dois são sócios à frente da Single Fin, marca de gim artesanal instalada na Barra do Sahy, a poucos metros do mar.
A paixão em comum pelas ondas está impressa de várias maneiras no negócio. A começar pela localização da destilaria e pelo nome da marca: single fin é o termo em inglês para monoquilha, ou seja, aquela família de pranchas mais clássicas, com uma quilha só.
“É um surfe mais elegante, mais ‘dançando’ sobre a onda do que ‘rasgando’ a onda — que [por sua vez] é o que o pessoal da nova geração quer fazer, com muitas manobras…”, diz Miguel. “A gente gosta mais desse fluido que tem no surfe de single fin.”
Depois de se formarem no Ensino Médio, eles seguiram caminhos muito diferentes. Mathias foi estudar Relações Internacionais na Austrália. “Acabei ficando seis anos. Lá, comecei uns empreendimentos, tinha uma empresa de skate com alguns amigos; sempre fui muito dos esportes, a gente trabalhava com importação, exportação.”
Aventureiro, Mathias passou depois dois anos embarcado em veleiros, ou ainda em uma expedição à Antártida, que rendeu um documentário dirigido por ele — Nômades do Mar, disponível no canal Off.
“Voltei para o Brasil em 2014 e comecei um empreendimento no Ceará, de árvores nativas, chamado Ymbu Agroflorestal. Trabalhamos para criar valor em cima de sustentabilidade, regeneração de floresta…”
Miguel, por sua vez, passou dez anos fora do país, de 2007 a 2017. Estudou Economia em Berlim e fez carreira em comércio internacional, trabalhando em uma empresa de importação e exportação de carne — primeiro na Alemanha e depois nos Estados Unidos, para onde foi transferido.
Durante essa fase na Alemanha, foi pegando gosto por gim. “Na época os gins artesanais tinham ‘brotado’ por lá. Um exemplo é o Monkey 47, que começou com uma destilaria pequena, na Floresta Negra”, diz.
Bebendo com amigos, Miguel resolveu dar um passo à frente e investir na fabricação própria, para “ver como faz”. “Comprei um alambique pequeno, de 5 litros, para uso caseiro. Montei um esquema de destilar com aquecimento do fogão de casa e resfriamento com uma água gelada que fica no condensador.”
Ele ia testando o seu gim em rodas de degustação com os amigos, vendo quais ingredientes combinavam (ou não) entre si… E assim foi evoluindo o que viria a ser a receita do Single Fin, incorporando referências botânicas e olfativas que ele recolhia em viagens de surfe.
“A verbena eu descobri no Marrocos, é o principal ingrediente do chá marroquino. A pétala de rosa que a gente usa me lembra as ruas de Bali, as oferendas de manhã, quando você sai na rua, tem um cheiro doce, superagradável”
Em 2018, os dois ex-colegas de Valinhos se reencontraram em São Paulo, depois de uns dez anos sem se verem. Miguel foi assistir à estreia do documentário de Mathias e o convidou para, no dia seguinte, provar o gim que ele vinha fabricando ainda de forma caseira. A decisão de empreenderem despontou quase instantaneamente.
“Nenhum de nós vinha da indústria de bebidas, mas conseguimos formatar o projeto”, diz Mathias. “Foi coisa de uma semana: a gente se encontrou e [pouco depois] já tínhamos todo o plano de negócio, tudo bem alinhado… Juntou o momento certo para os dois.”
A ideia, então, era fundar uma microdestilaria de gim. Mas onde?
Nessa época, Mathias vivia no Ceará, mas estava passando um período em São Paulo, prospectando novas oportunidades de empreendimento. Por outro lado, sabia que não queria se estabelecer na capital paulista, com seu ritmo frenético. “Não é um estilo de vida que eu estava disposto a abraçar naquele momento”, diz.
Instalar-se no litoral era uma escolha ao mesmo tempo óbvia e disruptiva. Óbvia porque junto com a vontade de empreender vinha o desejo de estar mais perto das ondas. E disruptiva porque o senso comum diz que cidades praianas têm vocação apenas para negócios turísticos, e ainda por cima sujeitos à sazonalidade.
Havia outra disrupção fundamental. Mathias explica:
“Somos fabricantes de gim, esse é um ponto importante. A maioria das marcas de gim nacionais hoje não produz o próprio gim, elas criam uma marca e a produção é terceirizada. A gente desenvolveu tudo do zero”
Nos últimos anos, o mercado da bebida ganhou uma série de novos representantes nacionais, inclusive algumas marcas premiadas. Segundo os sócios da Single Fin, pelo menos uma parte dessa concorrência adota um modelo diferente, terceirizando a produção.
“As grandes destilarias que no passado produziam só cachaça ou outros destilados passaram a produzir gim, então hoje há muitas marcas que apareceram no mercado e fazem a produção cigana”, diz Miguel. “É bem parecido com a produção cigana de cerveja: eles têm a marca, o rótulo, e fazem uma produção terceirizada.”
Decididos a não terceirizar a produção, Mathias e Miguel encararam o desafio de montar sua microdestilaria no litoral paulista, com todos os perrengues aí incluídos.
“O timing é muito importante quando você empreende, são vários detalhezinhos técnicos do dia a dia”, diz Mathias. “Quando você não sabe bem quando vai conseguir uma licença ou quando os equipamentos vão chegar, isso pode engessar muito a operação.”
O local encontrado para abrigar a Single Fin foi uma casa onde antes funcionava um escritório de arquitetura. O novo alambique foi criado sob medida. Miguel conta:
“A gente desenhou nosso próprio alambique, totalmente de cobre, a partir de visitas técnicas a destilarias de todo o mundo. Contratamos a construção no Brasil; devido ao valor, importar um objeto pesado desses ficava inviável”
Essas visitas técnicas pelo mundo incluíram as destilarias Cape Byron, na Austrália, You & Yours, em San Diego, na Califórnia, e a já citada Monkey 47, da Alemanha, entre outras.
De fora, a Single Fin nem parece uma destilaria: mantém uma cara de casa, com um deque na frente. Por dentro, Mathias diz que se assemelha mais a um laboratório. “Reformamos a casa inteira, quebramos telhado. Desenhamos uma sala de destilação, uma sala de engarrafamento, padronização e descanso…”
Ele calcula que, considerando o espaço externo e o estoque nos fundos, a área total não deve passar de 100 metros quadrados — menor do que muito apartamento.
“A gente realmente fez mágica ali, pra caber tudo naquele espaço compacto. Os equipamentos entraram pela janela.”
Assim como a destilaria, a garrafa da Single Fin foi criada do zero. Os sócios não queriam usar uma garrafa genérica, dessas que abundam no mercado. Em vez disso, contrataram o designer carioca Thiago Modesto para tocar o projeto.
“A gente aporrinhou ele praticamente durante um ano até chegar no formato final”, diz Miguel, rindo. A insistência valeu a pena. Em outubro de 2020, a garrafa (já patenteada) conquistou uma vitória no Prêmio Grandes Cases de Embalagem.
Ela de fato chama atenção pela beleza. Ranhuras ao longo do vidro remetem às ondas do mar, e o líquido potencializa esse efeito. Miguel revela um detalhe de acabamento:
“Depois de sair da fábrica, a nossa garrafa passa por um leve tingimento de cor de areia para dar a sensação como se a garrafa tivesse ficado por algumas décadas boiando no mar… Tudo isso foi pensado lá atrás, para destacar a garrafa de qualquer uma do mercado”
O rótulo também foi uma cocriação entre o designer e os dois empreendedores. Traz, além da identificação do lote (sempre batizado com o nome de uma praia da região), o desenho de uma figura feminina, nua, deslizando sobre as ondas.
“A ideia inicial dele era um deus surfando, mas aí pedimos pra alterar e fazer uma ‘deusa polinésia’”, diz Miguel. “O gim é uma bebida que a gente considera leve, e queríamos trazer essa leveza [no rótulo], uma certa elegância, um toque feminino.”
De nada adiantaria uma embalagem bonita se a bebida em si não chegasse aos pés da garrafa. Miguel exalta as qualidades do Single Fin:
“Nosso gim é bem complexo em termos de sabor. No olfato vem um cítrico elegante, da verbena; o retrogosto é um floral adocicado, de lavanda e pétalas de rosa… Bartenders gostam dessas nuances. Um dry martini com Single Fin é bem diferente de um dry martini básico”
Foram quase dois anos de desenvolvimento do produto, até o lançamento oficial, em março de 2020. O timing foi, digamos, complicado. Naquele mês, o Brasil parou por causa da pandemia.
A ideia original de vender apenas no B2B foi deixada de lado. Passaram a mirar também o consumidor final: pelo e-commerce, uma garrafa de Single Fin (de 700 mililitros) custa hoje 130 reais, mais o frete.
Superado o abre-e-fecha dos primeiros meses, os sócios conseguiram inserir o gim em restaurantes, bares e empórios. “Temos criado [novos] relacionamentos de distribuição, principalmente para B2B”, diz Mathias. Essa frente, hoje, representa cerca de 70% do faturamento.
“Nossos clientes não são redes de bares que têm contratos com marcas grandes, e sim locais exclusivos, que querem encantar o seu cliente apresentando o nosso produto”, diz Miguel.
A Single Fin tem capacidade de produzir até 5 mil litros por mês. Cada lote leva umas três semanas para ficar pronto. Nesse processo, eles contam com a assessoria de um engenheiro químico.
Mathias exalta o cuidado com a água, adicionada na produção para ajustar o teor alcoólico.
“A gente capta água direto de uma nascente da Mata Atlântica. Desenvolvemos um sistema próprio de filtração, com carvão ativado, dolomita, quartzo, e usamos essa água na padronização e em todos os nossos outros processos”
Segundo ele, a prática da indústria é furar um poço e depois desmineralizar a água por osmose reversa. “Vira uma água muito ‘neutra’ [no mau sentido].”
Destilarias de grande porte, ainda de acordo com Mathias, teriam o hábito de jogar fora a água do resfriamento, usada na etapa de condensação. “E é bastante: dependendo do tamanho do equipamento você gasta de 2 a 4 mil litros, às vezes até mais por lote…”
Para evitar esse desperdício, os sócios desenvolveram um sistema que armazena e recircula essa água. E ainda no quesito sustentabilidade, a fração menos nobre do destilado, em vez de ser descartada no processo, vira álcool 70º, vendido para higiene das mãos.
“Temos orgulho de que o nosso produto hoje não gera quase nenhum dejeto”, diz Mathias. “A única coisa que ‘sobra’ são os botânicos [bagas de zimbro e outros ingredientes] — que são lavados e vão para compostagem.”
Além de gim e de álcool 70º, o e-commerce e a lojinha da Barra do Sahy vendem camisetas, bonés e copos, inclusive um de cerâmica, criado por um artesão da vizinha Cambury.
Segundo os sócios, o negócio ganhou impulso ao longo de 2021. A meta agora é chegar ao fim de 2022 faturando 2,5 milhões de reais. Miguel ressalta:
“Não temos uma grande empresa investidora por trás, são realmente as economias do Mathias e do Miguel que sustentaram e criaram essa marca, então o passo é um pé depois do outro… E isso tem dado muito certo, porque a gente tem tempo para avaliar, estudar e fazer as coisas com carinho e dedicação”
Em breve eles planejam lançar um gim envelhecido por seis meses em barris de carvalho. No longo prazo, o sonho é expandir a fábrica e proporcionar uma experiência de visita mais estruturada.
A dupla de empreendedores-surfistas enxerga ainda mais longe, até onde a vista alcança:
“Queremos criar um hub que vá além do gim, com pequenos galpões que outros empreendedores criativos possam utilizar”, diz Mathias.
Miguel completa: “Existe um preconceito de que o litoral só vive de hotel e restaurante… Queremos mostrar que dá pra construir outros empreendimentos criativos.”
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