Slur é um termo em inglês usado para nomear palavras feitas para insultar.
Em geral são expressões com intenção depreciativa, que buscam diminuir o outro reforçando um preconceito, atacando características como raça, gênero, opção sexual, condição social ou de saúde, compleição física, idade etc.
Eu não conhecia esse termo. Não há uma palavra em português para designar esse tipo específico de injúria. Ou seja: não existe o conceito de slur no Brasil. Por isso não precisamos de uma palavra para expressá-lo.
De volta ao Brasil, depois de dois anos e meio, ouvi numa padaria a moça do caixa encaminhar um pedido ao menino da chapa com um grito que começava assim: “Ô, negão!”. Estremeci. Meu ouvido, e meu código de valores, já não admitiam esse tipo de coisa
E estremeci pela segunda vez ao me dar conta de como, até 30 meses antes, isso não me agredia da mesma forma. Se não houvesse uma intenção de ofensa, eu consideraria essa expressão “aceitável”.
Só que o simples fato de você se referir a alguém a partir de uma característica física ou comportamental que você considera diferente, algo que lhe chama a atenção ou lhe incomoda, já implica um olhar e uma atitude discriminatórios.
Porque você reduz a pessoa a essa característica, em detrimento de todas as outras. Você rotula a pessoa, a partir dos seus próprios preconceitos.
E a discriminação é sempre um exercício de poder de um indivíduo sobre outro. É sempre uma tentativa de segregar, de afastar, de humilhar, de ferir – em geral, direcionada de alguém que se considera “superior” a alguém que é considerado “inferior”.
Mesmo no caso da menina do caixa da padaria. Que, é muito provável, não teve a intenção de agredir o menino da chapa. Ainda assim, ela o fez. Porque lançou mão de um termo forjado na opressão racial.
E o fato de o menino já estar talvez tão acostumado à ofensa que nem a decodificou mais não torna aquele tratamento menos ofensivo.
As pessoas têm o direito de ser chamadas pelo seu nome. De modo neutro e respeitoso, livre de qualquer comentário ou juízo de valor ou tentativa de piada no modo como você se refere a elas. Ponto
Essa é uma regra básica de convivência social. Uma cortesia mínima no âmbito das relações interpessoais. Coisas que nós desrespeitamos barbaramente, e cotidianamente, no Brasil.
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Nos últimos anos, a discussão em torno de temas como igualdade e respeito à diversidade, aos direitos das minorias e às liberdades individuais, ganhou espaço no mundo todo. Ou seja: a empatia e a solidariedade avançaram. Inclusive no Brasil.
Mas nesse quesito do slur, ainda não evoluímos no país. Nossa linguagem, e tudo que se esconde atrás dela, continua a mesma de 50 anos atrás. Nesse aspecto, continuamos insensíveis. Cínicos.
“Negão” ou “negrão” é horrível. Além da redução forçada do indivíduo a uma de suas tantas características – a raça –, é notável o uso do aumentativo, que busca emprestar ao sujeito uma condição bruta ou ameaçadora.
“Negrinho”, e o tom de superioridade e de (falso) acolhimento que o termo embute, é insuportável.
Assim como “moreno” – como se o termo “negro” fosse ofensivo e houvesse a necessidade de um eufemismo.
Em tempo: “negro” não é, evidentemente, um insulto. Bem como “preto”. Ou “gay” ou “gordo” ou “velho”. Nesses casos, o slur está no tom com que a palavra é empregada. Na intenção de quem fala e não na palavra em si
Esses são termos substantivos usados, às vezes, por alguns, de modo adjetivo, com intenção de ofender.
Perceba: há palavras neutras que viram slur a partir do uso ignóbil que se faz delas. Assim como há termos que são slur mesmo quando usados sem a intenção de insultar.
Até “neguinho”, palavra usada, de modo geral, em tom amistoso, ou “nego”, quando usada em contexto amoroso, não cabem. Não são termos inocentes. Porque fazem referência a um sistema semântico cunhado na discriminação de raça.
Veja: não há correspondência em inglês a essa terminologia que acabo de listar. Elenquei cinco termos racistas que em outros países são inaceitáveis. E que no Brasil nós toleramos e continuamos usando sem nos darmos conta do quanto são espúrios.
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A regra é simples: você chama o sujeito pelo seu nome. E acabou. Chamá-lo por qualquer uma de suas características, seja ela racial ou não, com a anuência dele ou não, é por si só um gesto ofensivo.
A única palavra em português que parece banida como um insulto racial é “crioulo”. Termo que corresponderia a N-word em inglês, inclusive pela origem escravocrata de ambas. (Mas note que ainda é possível escrever essa palavra em português, entre aspas e passando álcool gel no teclado e nas mãos depois de digitá-la. O termo em inglês já foi banido como uma das palavras mais ofensivas do idioma.)
Da mesma forma, ainda não é completamente inaceitável em português se falar em “veado” ou “bicha” ou “boiola”, enquanto a Fa-word já se tornou impronunciável em inglês.
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O racismo é uma praga que o mito da democracia racial brasileira impede de encararmos e erradicarmos no país. Ainda usamos impunemente termos como “denegrir” ou “magia negra”.
Pior: ainda se vê gente esfregando o indicador no antebraço para fazer uma referência pejorativa à cor de alguém – um comentário hediondo embalado num gesto covarde.
(Falo aqui dos negros, ainda vistos com subcidadãos no Brasil. Mas tenho certeza de que os japoneses, por exemplo, não se sentem perfeitamente integrados à vida nacional, mais de 100 anos depois de terem aportado por aqui. Ainda são olhados com estranheza ou tratados no plano da anedota, em muitos casos.)
Da mesma forma, o sexismo que estabelece padrões e limites para homens e mulheres, em geral empoderando o gênero masculino e encaixotando o gênero feminino, está presente em vários pequenos e grandes gestos do nosso dia a dia
Esse lixo vem às vezes travestido de cortesia. Ou de etiqueta. E a gente aceita e reproduz isso como se não fizesse mal. Mas o subtexto está lá: as mulheres são inferiores numa série de aspectos, como se houvesse coisas que elas não pudessem fazer ou não fosse dado a elas realizar.
Assim como é inacreditável o modo caricato e grosseiro como vemos os gays sendo retratados nos programas de humor brasileiros, falando em falsete, de modo afetado, ou então na forma de mulheres de voz grossa e gestos rudes.
Não estamos falando dos anos 70 ou 80, em que Mussum era chamado de “grande pássaro negro” em horário nobre, para uma plateia infantil (perceba nessa mesma frase o humorista Antonio Carlos Bernardes Gomes sendo comparado a um peixe escuro que vive na lama e a um urubu), mas em atrações que continuam sendo assistidas e convidando ao riso em pleno 2022.
Boa parte do humor televisivo nacional ainda é baseado na ridicularização de pobres, gordos, homossexuais, velhos. Trata-se de um festival de risadas movidas à discriminação
Como toda discriminação é movida a ódio, eis do que são feitos os esquetes que oferecemos semanalmente a milhões de brasileiros. Não é de espantar que continuemos cultivando o preconceito entre nós. Somos adubados com ele.
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Eis o ponto: na cultura brasileira, com frequência, o slur vem embalado em humor. A gente carnavaliza tudo. Até a injúria.
(E, mea culpa, quanto humor de cunho sexual eu mesmo já pratiquei em minha vida… Que merda.)
Termos que deveriam ser considerados slur vêm também às vezes pincelados com uma demão de camaradagem, com a boa e velha informalidade brasileira, que força uma intimidade inexistente, e estabelece uma proximidade invasiva, com o fim de lubrificar o caminho tanto para tornar mais fácil ao agressor praticar a sua violência quanto para facilitar ao agredido assimilar a porrada.
E assim vamos vivendo, e convivendo, mal, renovando prerrogativas para uns, alimentando ressentimentos fundos em outros; uns confortáveis em constranger, outros tendo que engolir constrangimentos.
Mas não se engane. Slur é slur. Aqui ou em qualquer lugar.
Slur é cruel. Porque identifica um aspecto que você considera desfavorável no outro e usa isso para diminuí-lo ou atacá-lo. (Ainda que essa diferença não signifique desvantagem alguma para o seu interlocutor em relação a você – exceto nas suas lentes tortas.)
Slur é covarde. Porque significa esfregar aquilo que você considera um privilégio na cara de alguém que não dispõe da mesma prerrogativa. É o ato de rebaixar e desmerecer o outro para que você possa se sentir melhor e maior diante dele
Slur é perverso. Porque se trata de ferir o outro para se divertir com aquele sofrimento. É o exercício de sentir satisfação, e de salivar de alegria, a partir da dor alheia.
Slur não tem graça. Slur é violência e violação. Slur é indesculpável.
Adriano Silva é fundador da The Factory e Publisher do Projeto Draft e do Future Health. É autor de dez livros, entre eles a série O Executivo Sincero, Treze Meses Dentro da TV e A República dos Editores, e lançou recentemente seu mais novo título: Por Conta Própria: do desemprego ao empreendedorismo – os bastidores da jornada que me salvou de morrer profissionalmente aos 40.
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