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“Só os nativos digitais podem por fim à barbárie na internet e criar um novo pacto de convivência online”

Brenda Fucuta - 31 ago 2018
Em seu recém lançado livro "Hipnotizados", a jornalista Brenda Fucuta fala sobre os reais efeitos do uso intenso do celular e da internet na saúde das crianças e adolescentes.
Brenda Fucuta - 31 ago 2018
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por Brenda Fucuta

Como mãe de adolescente, o que me motivou a escrever o livro Hipnotizados, o que nossos filhos fazem na internet e o que a internet faz com eles foi a busca de respostas às dúvidas de vários pais sobre os reais efeitos do uso intenso da celular e da internet na saúde dos seus filhos.

Tentei separar a verdade do mito, o que tinha comprovação científica do que não tinha fundamento, e fui atrás da visão do próprio adolescente sobre o assunto. O livro não é um manual, mas uma reflexão sobre este momento que, espero, ajudará os pais a não entrar em pânico.

Em meio a fake news, roubo de dados, discursos de ódio e ciberviolência, a sensação que temos é que a rede se transformou numa terra sem lei.

O que parece apenas barbárie, para os adultos, pode ser a circunstância para os nativos digitais construírem e consolidarem um novo pacto de convivência para o século 21

A seguir, compartilho um trecho de Hipnotizados, especialmente selecionado para o Draft. Espero que apreciem a leitura:

 

Quase 1,5 milhão de crianças e adolescentes se sentiram discriminados na internet, e 9 milhões presenciaram outras pessoas sendo agredidas por comentários misóginos, racistas e homofóbicos. No dia 26 de novembro de 2016, dirigindo-se a educadores, assistentes sociais e promotores de justiça do Espírito Santo, o psicólogo Rodrigo Nejm estava citando esses dados, coletados na pesquisa Tic Kids Online Brasil 2015.

Em Hipnotizados, lançado pela Objetiva, Brenda Fucuta fala dos impactos do uso da internet na saúde dos jovens.

Era um dia abafado em Vitória, capital do estado, mas Rodrigo, um homem magro, com a cabeça raspada e de fala rápida, estava de terno no anfiteatro onde treinava futuros agentes multiplicadores do conceito de uso responsável da web. Até meados de 2017, ele e alguns colegas já tinham aplicado o treinamento em 62 cidades do país.

Rodrigo integrava a equipe de advogados, psicólogos e voluntários que combatiam a violência na internet em nome da ONG Safernet. Criada por um grupo de cientistas, acadêmicos e advogados baianos, a entidade recebia, por e-mail ou chat, denúncias de ciberviolência e violações na internet.

Em doze anos de funcionamento, este sistema registrou 4 milhões de queixas sobre intimidação, humilhação pública, discriminação, conteúdos de ódio, sexting e fraudes financeiras. Em sua palestra, Rodrigo sustentou três pontos que me chamaram a atenção:

1) O discurso de ódio e o ciberbullying aumentam à medida que crescem a intolerância, a discriminação e a dificuldade de lidar com a diversidade;

2) Para haver segurança na internet — “segurança das pessoas e não das máquinas” — é preciso que se adote a cidadania digital: um código de direitos e deveres básicos na rede.

3) Boas escolhas, ética e respeito na convivência podem ser aprendidos, especialmente por crianças e adolescentes.

No meio da terceira fila do auditório, ao meu lado, uma professora pediu a palavra. Levantou-se para dizer que, em relação ao uso de celular e redes sociais, não acreditava ser possível disciplinar adolescentes. Eles simplesmente faziam o que queriam. Muitos colegas concordaram.

Rodrigo insistiu na ideia de que o ambiente digital era um espaço com deveres e direitos. Como qualquer outro espaço de convivência, regrado por princípios e leis. Crianças e adolescentes precisam refletir sobre seus comportamentos dentro e fora da rede, e os educadores podem ajudar a provocar essa reflexão.

É raro pensar na rede como um espaço público — um local ao qual todo cidadão pode ter acesso. Mas ela é como uma biblioteca municipal: existe um código universal de comportamento para quem deseja ler, estudar ou pegar um livro emprestado

Trajes adequados, compromisso de devolução, silêncio. Em resumo, trata-se de um contrato de compartilhamento do espaço e de seus benefícios baseado no princípio do respeito ao outro e ao que é do outro.

Muitos estudiosos do assunto acreditam que o exercício da cidadania digital seja uma evolução, um passo além na prática da cidadania analógica. Os dois conceitos — analógico e digital — se fundamentam em crenças contidas em um dos documentos mais bonitos do mundo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovado em 1948 em assembleia da ONU em Paris. Produzido no ambiente do pós-guerra, em resposta aos “atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade”, o tratado surgiu como uma aposta em um mundo que assegurasse aos cidadãos a liberdade, a dignidade e a igualdade de direitos, inclusive entre homens e mulheres.

Setenta anos após a aprovação do documento, no entanto, questões como racismo, misoginia, homofobia e xenofobia estavam longe de ter sido superadas e já surgiam novos problemas derivados da convivência humana.

A adoção dos princípios da cidadania digital pode ser uma oportunidade de repensar e repactuar a convivência em sociedade

São inúmeras e complexas as questões que envolvem a convivência digital. Discursos de ódio transpiram crenças contra as quais os assinantes da Declaração Universal se levantaram — como o nazismo, que volta na forma de uma doença contagiosa não erradicada. Notícias falsas circulam e produzem um ambiente, chamado de pós-verdade, no qual boatos e mentiras superam a informação isenta. Sistemas tradicionais ruem, surgem novas ameaças. Hackers e crackers colocam em xeque a confiança que temos na segurança bancária e no sigilo das informações. Empresas, teóricos e uma nova geração questionam o valor da privacidade.

Seria muito otimismo acreditar que a tecnologia irá, sozinha, nos tornar melhores como seres humanos. Mas também não precisamos deixar que ela nos torne piores

A adoção dos princípios da cidadania digital pode ser uma oportunidade de repensar e repactuar a convivência em sociedade. Algo que nós e nossos filhos temos a oportunidade rara de ao menos tentar.

 

Brenda Fucuta, 56, é formada em jornalismo. Foi publisher das principais marcas jovens e femininas da Editora Abril, entre elas as revistas Capricho, Claudia, Elle e Saúde. Atualmente, escreve no Universa, do UOL, sobre a convivência em sociedade, no blog Nós.

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