(Texto publicado originalmente em maio de 2016.)
Por Jorge Adriano de Souza Lopes
É fundamental conhecer o passado para que possamos entender o presente. E para que possamos projetar o futuro. Eu tenho 48 anos. Meu filho tem 15. A gente conversa muito, sobre muitas coisas. (Menos sobre futebol – ele é colorado, por influência da mãe, e eu sou gremista.) Uma das conversas recorrentes que temos é sobre sermos negros.
Meu filho vive, felizmente, uma época bem distinta da que eu vivi, quando tinha a sua idade. Mas, infelizmente, ainda há alguns resquícios daquela época, bem vivos, na realidade dele. O mundo avançou. O Brasil também. Inclusive na questão de raça. Mas ainda falta caminhar um bocado.
Talvez minha geração tenha contribuído um pouco para darmos alguns passos no caminho da construção de uma democracia racial no Brasil. Mas ainda há muito o que fazer.
A geração do meu filho não recebeu isso pronto – como eu gostaria de ter podido lhe entregar. Então ele terá que carregar o seu quinhão de pedras e sujar as suas mãos também nessa água turva. Ele terá de fazê-lo para sobreviver, para se dar ao respeito – como eu fiz. (Embora eu nunca tenha sido um ativista e tenha sempre preferido a convivência ao confronto, e o jogo de cintura ao choque direto.) Ele terá de fazê-lo para que a sociedade em que o filho dele viverá seja melhor do que essa em que ele vive ou daquela em que eu vivi.
Meu filho terá que enfrentar situações ruins – embora provavelmente não tão traumáticas quanto as que eu enfrentei. Me resta torcer (e continuar contribuindo) para que meu neto tenha que se preocupar com outras coisas mais úteis do que com esse tipo de discussão – que, francamente, já deveria ter sido superada há muito tempo.
Meu filho é um adolescente tranquilo, sorridente, de bem com a vida. Ele encara as adversidades de modo sereno. Herdou a elegância da mãe. E a minha, digamos, calma. Na idade dele, acho que eu era um garoto mais preocupado, menos leve. Eu sentia mais o peso do mundo sobre os ombros – talvez porque aquele mundo fosse mesmo mais pesado.
Tenho procurado contar ele a minha história de vida, um pouco das coisas que me aconteceram, para que ele compreenda melhor algumas das minhas atitudes e preocupações.
Nasci no final dos anos 1960, no interior de uma cidade do interior gaúcho, num lugar que tinha muito pouco a oferecer. Meus pais trabalhavam como empregados em uma fazenda, na lida do campo. Eram peões. Ainda hoje há muito disso. Capatazes vivendo em fundos de campo, trabalhando por um salário mínimo. Não passávamos fome, a mesa sempre foi farta – mas não havia outros recursos. Estávamos muito longe de tudo.
E se você olhar mais para trás, perceberá pouca diferença naquela situação que acontecia com a minha família há 50 anos, e que acontece ainda hoje com muitas outras famílias, daquela que os avós dos meus avós talvez vivessem há 200 anos. O mesmo trabalho, a mesma pobreza, o mesmo isolamento, a mesma falta de perspectiva, a mesma autoestima baixa. Aquela era uma região construída sobre o latifúndio e a pecuária. Em que a mão-de-obra escrava e negra foi usada à larga ao longo de séculos.
Na geração dos meus pais, não havia mais o chicote. Mas ainda havia o patrão. Já havia a alforria. Mas, de alguma forma, a sua vida ainda não lhe pertencia totalmente. E certamente ainda havia a Casa-Grande e a Senzala, ainda que maquiados de modo diferente. A discriminação era uma presença constante entre nós. Um incômodo que não passava e que com frequência doía.
Vivemos lá até os meus 6 anos. Comecei a me alfabetizar por ali mesmo. Eu e meu irmão mais velho andávamos alguns quilômetros, atravessávamos a estrada, e íamos aprender a ler e a escrever com uma moça que tinha estudado na cidade.
Depois de algum tempo, meu pai, com toda a sua limitação, percebeu que tinha de oferecer algo melhor para os filhos – eu lhe admiro imensamente por essa visão que teve, e lhe agradeço muito pela atitude que tomou. Meu pai, ele próprio, havia estudado pouco. Até por volta da 5ª série do ensino fundamental. Minha mãe tinha ainda menos instrução – mulheres negras, na geração dela, sofriam dois tipos de discriminação: de cor e também de gênero.
Foi assim que eles resolveram que iríamos morar na cidade. Basicamente, para que meu irmão e eu pudéssemos estudar numa escola melhor estruturada. E para que participássemos da vida em sociedade. Um dia subimos numa carroça, com nossos pertences, e engrossamos os números do êxodo rural daquele Brasil que se urbanizava rapidamente.
A cidade em que fomos morar, Caçapava do Sul, tinha por volta de 30 mil habitantes. Fomos morar na periferia – que não ficava muito distante do centro. Dava para ir a pé ou de bicicleta. Quase ninguém tinha carro na vizinhança. E o transporte público era ocasional. As distâncias físicas, de fato, não eram grandes – muito menores do que na fazenda. Quanto às distâncias sociais e econômicas, bem, aí a conversa era bem diferente.
Completei minha alfabetização num colégio público, que ficava perto de casa. Meu pai conseguiu trabalho como porteiro na agência do Banco do Brasil – onde labutou até se aposentar. E minha mãe cuidava de nós, da casa, e trabalhava como faxineira.
Os mais abastados estudavam num colégio particular, o único da cidade, a Escola Particular Santíssimo Nome de Jesus, liderado por uma congregação católica – o “Colégio das Irmãs”, como era conhecido. (Caçapava do Sul, localizada na região central da campanha gaúcha, vivera um ciclo de crescimento econômico nos anos 50 e 60, com a extração de cobre e de calcário, e a partir dos 80, com o esgotamento desse ciclo, perdeu sua vocação econômica e estagnou. As Irmãs fecharam seu colégio no fim dos anos 80 e deixaram a cidade. Hoje Caçapava conta com uma única escola particular.)
Ainda assim, nunca considerei que a escola pública tivesse qualidade inferior – sempre achei que o que faz realmente diferença é o empenho individual, as metas de cada um e o tanto de sangue e de suor que você está disposto a colocar para transformar seus sonhos e desejos em realidade.
Claro que não havia negros no “Colégio das Irmãs” – todos os negros eram pobres e, como nós, moravam em vilas com ruas de terra e esgoto a céu aberto, e estudavam em escolas públicas, junto com os pardos, com os brancos e com todas as outras cores que não pudessem pagar uma mensalidade privada.
Corriam os anos 70 naquele rincão. Martin Luther King já tinha sido assassinado nos Estados Unidos (nós não tínhamos ideia disso nem do que isso significava). Muhammad Ali encerrava uma carreira em que havia contestado muito a situação racial nos Estados Unidos (nós também não sabíamos disso). E eu vivia ali situações que hoje talvez soem bizarras e esdrúxulas – mas que eram cenas corriqueiras da minha infância e que compunham a normalidade do tratamento dedicado no Brasil a negros como eu, naquela época.
Uma delas: nas festas da escola, que aconteciam muitas vezes na mesma sala onde eu sentava para aprender, uma corda atravessava o espaço, separando brancos e negros para que não dançássemos juntos. Isso acontecia também em outros eventos sociais.
Nós não sabíamos, mas vivíamos ali um Apartheid. À brasileira. À gaúcha. A música era a mesma, a comida era a mesma, o poder aquisitivo era o mesmo, as pessoas até se falavam por cima da corda – mas alguns daqueles pobres não admitiam dividir o mesmo espaço de baile com outros pobres.
Igualados pela dureza da vida, uns pobres davam o seu jeito de se sentirem de algum modo “superiores” a outros pobres que tinham que amargar aquela humilhação extra.
Comecei a verificar ali, na tenra idade, que as coisas não seriam fáceis.
Ouvi muitas vezes expressões como “esses negros sujos”. Às vezes, nas proximidades das casas de colegas que me convidavam para estudar junto com eles, porque eu tinha notas melhores. Eu servia na hora de estudar ou de trabalhar. Para as festas, não me convidavam. Havia dois mundos. Dois universos. Duas realidades paralelas, não-comunicantes.
Nessa época, as classes eram duplas e na maioria delas sentávamos negros com negros, brancos com brancos, com raríssimas exceções. Eram coisas que me incomodavam. Eu não conseguia entender por que tinha que ser assim.
Na cidade havia também um clube só para negros e outro só para brancos. (O critério de autoatribuição racial não existia. E, se existia, passava longe. Se eu quisesse me associar no clube dos “brancos”, teria que apresentar uma certidão de óbito, um diploma de proficiência em esperanto, além de provar que havia nascido em Bangladesh, qualquer coisa assim. O detalhe é que, do ponto de vista europeu ou norte-americano, todos ali seriam “pardos” – ninguém ali seria “branco”, do jeito que eles imaginavam ser. Eles colocavam um peso enorme numa característica que não significa virtude alguma. E que, na real, eles nem tinham.)
Da mesma forma, havia um CTG (Centro de Tradições Gaúchas, uma espécie de clube temático em que se busca preservar as tradições sul-riograndenses, como a comida, as músicas, as danças, a indumentária) só para os negros, e outro só para os brancos. Os brancos eram tolerados nos ambientes dos negros. Os negros não tinham vez nos ambientes dos brancos. Essa é uma diferença importante da questão racial brasileira em comparação com o cenário norte-americano, por exemplo. Lá, os negros aprenderam a pagar na mesma moeda, a falar de volta no mesmo tom de voz. Conosco, aqui, nunca foi assim.
Hoje, felizmente, isso tudo dá cadeia. É crime e rende prisão em flagrante. Mas há 30 ou 40 anos esse era o comportamento da fina flor da nossa sociedade. Um negócio tão banal quanto tomar um copo d’água.
Eu tinha alguns amigos brancos, na adolescência. Mas na hora dos eventos sociais, era “cada um na sua”. Meus próprios amigos me diziam isso. Nem sempre de forma indireta. Relacionamentos inter-raciais eram inconcebíveis. Quando aconteciam, geravam grande constrangimento. Viravam tabu. Seus protagonistas se tornavam párias.
Se um colega branco quisesse fazer uma doideira de adolescente, ele seria apenas um adolescente fazendo uma bobagem. Se eu, ou qualquer outro adolescente negro, decidisse fazer a mesma doideira, estaríamos fazendo uma “negrice”, confirmando que “negros, quando não fazem na entrada, fazem na saída”. Só para citar duas outras pérolas que cresci ouvindo.
Para ser aceito, e para cavar o meu lugar no mundo, tive que ser duas vezes melhor e mais “certinho” do que meus amigos brancos, que tinham as portas colocadas mais próximas deles.
Antes de me formar no ensino médio, já sabia que não queria nada daquilo para mim. Eu almejava muito além do que aquela vida medíocre que estava à minha frente. Minha mãe, com toda sua simplicidade e humildade, me dizia: “Se você quer ser alguém na vida, estude. E estude muito”. Foi com o apoio dela, Dona Zenaide, que me dediquei a estudar para valer. Em seguida, consegui uma bolsa de estudos no Colégio das Irmãs – onde minha mãe trabalhava como faxineira.
Aos tropeços, sem muita orientação, nem condições financeiras que me permitissem ter o mesmo nível de meus colegas, fui indo. Aprendendo não apenas o que os livros tinham a me ensinar. Mas aprendendo também, aos poucos, a suportar olhares e comentários quando me viam falando com minha mãe, nas ocasiões em que eu a encontrava na escola e ela estava limpando o que eles haviam sujado.
Isso tudo gerava tristeza. Mas produzia em mim, também, grande estímulo. Vi que eu podia buscar mais da vida. E quando você começa a ver que pode, quando passa a descobrir sua própria potência, esse é um sentimento muito bom. Que te leva a querer mais. Bolsista, eu não podia mais ser só duas vezes melhor do que os outros – eu tinha que ser três vezes melhor.
Ainda na 8ª série (na época, o último ano do ensino fundamental), fui eleito líder da turma. Era o único negro da sala. Tive orgulho naquele dia – em especial, da minha mãe, que, com seu jeito quieto, respeitoso, sempre me mostrou, sem dizer palavra, como seguir andando, sem dar ouvidos a coisas como a que ouvi um dia de uma professora, que comentou com um de meus amigos, sem saber que eu estava ouvindo: “você, todo bacana, andando com um negro…” Espero que minha mãe também tenha sentido orgulho de mim naquela ocasião.
Quando você cresce ouvindo que é inferior, que não tem valor, que não vai conseguir, e quando você enxerga isso a todo momento nos olhos das pessoas que te olham, mesmo quando elas não explicitam o preconceito com palavras, você tende a acreditar que isso é verdade. E isso lhe põe para baixo. Você mesmo passa a desacreditar de você – afinal, todas aquelas pessoas não podem estar erradas. Só que, ao desistir de você mesmo, você acaba deixando que aquela profecia que fizeram a seu respeito se cumpra.
Eu tinha tudo para não dar certo. E teria mil desculpas para oferecer a mim mesmo se tivesse desistido. Então, na vida, tem horas que você pode contar consigo mesmo. Aí é fundamental confiar no seu próprio potencial. E manter bem firme a resolução de não desistir. Uma hora o esforço e a obstinação viram o jogo a seu favor. Tem gente que chega muito mais longe com muito menos esforço? Tem. Isso é uma injustiça? É. Mas eu não tenho ingerência sobre a vida dos outros. Só posso gerir a minha.
Foi com essa insistência e com esse afinco que atravessei o ensino médio. Trabalhando de dia, estudando à noite, revisando polígrafos e apostilas (muitos deles emprestados, de segunda mão) nos fins de semana. Passei no vestibular e me formei em Ciências Contábeis. O primeiro bacharel na história da minha família.
Lá se vão 20 anos. Virei professor do curso técnico na mesma escola em que estudei. Em seguida, me mudei para Porto Alegre. Novas portas se abriram, me especializei. Ingressei na classe média, graças a meus próprios esforços – o primeiro a realizar essa ascensão entre meus familiares. Meu filho estuda hoje numa escola particular – e sem precisar de bolsa. Eu posso pagar. Ele está em pé de igualdade com todos os seus colegas. Ainda que ele, em 2016, também seja o único negro da classe – como eu fui em 1985.
Ele vai ter da vida aquilo que conseguir plantar e colher, a partir dos seus próprios esforços. No fundo, é só isso que um garoto pobre, seja ele negro, branco, amarelo ou azul, precisa – ter o mesmo ponto de partida dos demais, não sentir que corre uma corrida de 1 500 metros, com obstáculos e com os pés amarrados, enquanto o garoto da raia ao lado corre uma corrida de 100 metros – e montado num quadriciclo.
O que sempre reafirmo em minhas conversas com meu filho é que a maior virtude de um homem está em saber lutar pelo que ele quer, respeitando sempre os outros – e seus próprios princípios e valores. Espero que ele olhe para o futuro sem medo de inovar nem de enfrentar desafios. Não somos raças, somos seres humanos, pertencemos todas à mesma espécie. Ainda assim, como negros, ajudamos a construir esse país, para onde fomos trazidos à força, sofrendo desproporcionalmente, ao longo de muitos anos. Uma realidade que se estende até os dias atuais.
Digo a ele que sou favorável às cotas raciais. Há muita injustiça histórica, acumulada, que precisa ser retificada. Há um débito que precisa ser zerado. Depois disso, quando as condições forem equânimes, não precisaremos mais desse tratamento diferenciado favorável – que vem para compensar os séculos de tratamento diferenciado desfavorável que nos foram impostos.
E, infelizmente, os verbos nessas frases ainda não podem ser usados no tempo passado. Nos caixas eletrônicos, ainda hoje, muitas pessoas nos olham com desconfiança.
Quando pegamos um transporte coletivo, alguém senta ao nosso lado somente quando não há mais nenhum lugar vago. Se usamos cabelo grande ou crespo, somos vistos como desleixados – e não como estilosos. Se entramos em um elevador de um prédio mais chique, ainda ouvimos que aquele não é o elevador de serviço. Ou te interrogam de um jeito que não fariam com outra pessoa. Nas ruas, é comum as pessoas segurarem melhor as suas bolsas ao cruzarem com você.
Não dá para aceitar essas atrocidades no dia a dia, em uma cidade onde eu pago meus impostos, no país que eu ajudo a desenvolver com o meu trabalho.
Esses dias eu conversava com meu filho sobre ter cuidado com a violência na rua, já que ele vai sozinho e a pé para a escola. E ele me respondeu: “pai, não te preocupa. As pessoas, quando me enxergam, atravessam para a outra calçada”. Isso me machuca. De modo explícito ou velado, o racismo ainda existe e está longe de acabar.
Eu não posso me sentir um homem realizado enquanto minha família tiver que lidar com esse tipo de coisa. Esses dias minha mulher ouviu, de um professor, num curso de especialização que fazia: “nossa universidade vai precisar baixar o nível para que os cotistas possam acompanhar”. Ela não era cotista. Mas é negra. A declaração não embute apenas um preconceito de classe — ela também é racista.
Ainda assim, não sou um cara amargurado. Quando olho para meu filho, me sinto um pouco mais leve. Sinto nele a esperança de um futuro melhor. É um cara que já sorriu, desde que veio ao mundo, muito mais do que eu sorri a vida inteira. Um cara que tem orgulho do seu cabelão afro – estiloso! – e do seu tom da pele. Um cara que já fala inglês e que está prontinho para morar um tempo fora do país – estamos planejando um intercâmbio no exterior.
A cada novo projeto que pinta no seu radar, a cada nova oportunidade que ele aproveita, eu sinto que estou cumprindo meu papel de pai. Assim como meu pai e minha mãe, do jeito que lhes foi possível, cumpriram o papel deles para comigo.
A jornada à frente ainda é longa. Mas ele a trilhará com dignidade, tenho certeza. Ele, e muitos outros garotos negros como ele, talentosos e promissores, precisam de um Brasil menos preconceituoso. Mas eu diria que um país com tanta discriminação, e não só racial, como o nosso, precisa ainda mais dele e de outros garotos negros como ele, talentosos e promissores.
Jorge Adriano de Souza Lopes é contador.
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