“Nada é mais nocivo que o preconceito que a gente não vê, que está no dia a dia, nas pequenas coisas”

Luciana Sato - 15 jun 2017Luciana Sato conta como achava que tudo ia bem na sua vida até perceber como o machismo e o preconceito são inconscientes, cruéis. Começou, então, a se mexer, se reencontrar, se reconectar.
Luciana Sato conta como achava que tudo ia bem na sua vida até perceber como o machismo e o preconceito são inconscientes, cruéis. Começou, então, a se mexer, se reencontrar, se reconectar.
Luciana Sato - 15 jun 2017
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por Luciana Sato

Desde pequena, sempre desafiei minha mãe quando ela me pedia para ajudá-la nos afazeres domésticos. “E o que o Fernando (meu irmão) vai fazer? Tenho os mesmos direitos que ele”, eu dizia. Na época, meu pai sustentava a casa e quase não ajudava com as tarefas. Depois, minha mãe teve câncer de mama e — como mágica — meu pai passou ajudá-la em todos os afazeres domésticos, sem se constranger por isso.

Em casa, meu marido e eu dividimos as tarefas e as despesas. Meu filho brinca de cozinhar. Minha filha tem uma moto elétrica e brinca de consertá-la, assim como o meu marido. Portanto, a equidade de gênero, pauta tão acalorada nos nossos dias, sempre esteve em descanso em casa. Até que… algo começou a me incomodar. 

De repente, comecei a comparar a minha rotina com a do meu marido. Ele sempre conseguiu incorporar os hobbies no dia a dia. Eu, nunca

Ele participa de várias comunidades de motos e sai a passeio com os amigos periodicamente. Apesar de eu também sair com minhas amigas, as comunidades que eu participo se restringem a networking profissional ou a um grupo de mães – e para ser sincera, não tenho muita identificação com eles. Com o primeiro, porque acredito que o networking se dá de uma forma natural quando você já possui uma experiência prévia com os contatos; com o segundo, porque percebo muitas mães extremamente radicais e julgadoras.

No trabalho é a mesma coisa: vejo meus colegas homens participarem de grupos de futebol, assunto que os une além das iniciativas profissionais, enquanto, apesar de eu ter colegas que tenham se tornado amigas, não temos nada que nos una de forma mais coletiva. Fiquei com aquilo ali, incomodada porém agora atenta.

Só quando abri espaço para perceber os sinais é que as peças começaram a se juntar.

Participei de um encontro de liderança feminina e a palestrante perguntou sobre as características das mulheres ali presentes, a maioria parecia buscar a resposta “certa” ou mais adequada, dizendo palavras como “determinação”, “foco em resultado”, “garra”, “força”. Acho que fui a única que falou “relacionamento”, porque essa sempre foi a minha essência – mas admito que só recentemente é que vi que essa característica poderia ser encarada como uma fortaleza.

Nesse mesmo encontro, conheci dois conceitos que me chamaram a atenção: o de vieses inconscientes e o do movimento He For She. Os vieses inconscientes, também conhecidos como unconscious bias, são associações automáticas que resultam em julgamentos intuitivos e atitudes em relação a outras pessoas. Eles são processados de forma rápida pelo cérebro, relacionados a associações com memórias antigas, noticiários, novelas e experiências que compõem essa percepção e fazem com que tenhamos conclusões automáticas, sem consciência ou racionalização. Qual a consequência prática disso?

Somos preconceituosos sem ter consciência e isso dificulta demais o fim da discriminação

Em março deste ano, um exemplo disso foi bastante divulgado: um casal que trabalhava em uma empresa de empregos fez um experimento: ele assinava o nome dela nos emails e vice-versa. Ao fim de duas semanas, ele relatou que viveu um inferno: “Todas as minhas perguntas ou sugestões eram questionadas. Os clientes com os quais normalmente era fácil lidar passaram a ser condescendentes. Um deles me perguntou se eu estava solteiro”. A mulher, por sua vez, teve a semana mais produtiva de sua carreira. Conclusão dele: “Percebi que eu não era melhor no trabalho, mas eu tinha essa vantagem invisível”.

Ler este relato foi chocante para mim: eu nunca tinha pensado em como esses preconceitos são invisíveis e muitas vezes, inconscientes. Isso mexeu profundamente comigo.

Para meu alívio, nem tudo era incômodo. O movimento He For She conta com o apoio dos homens para uma sociedade mais justa e igualitária. E por que isso é tão importante? Os homens ocupam 95% dos cargos de liderança e são responsáveis pela maioria das decisões. E por que eles apoiariam esta causa? Pelo fato de que, ao mantermos esse sistema patriarcal, limitamos a própria atuação dos homens, que se veem presos ao papel de provedor. Exemplo: há muitos maridos que são atuantes em casa, tanto nos afazeres domésticos quanto no cuidado dos filhos.

Quantos homens se sentem, efetivamente, à vontade para dizer que lavam louça e dão banho nos seus filhos todos os dias?

Por outro lado, também é importante que esses pais pensem em uma sociedade mais aberta para que suas filhas tenham a liberdade de serem quem quiserem ser e consigam ocupar os postos que quiserem ocupar.

Ao pensar em todos esses pontos, mais um me chamava a atenção: a falta de apoio entre as mulheres. Ao compartilhar essas “dores” com algumas amigas, todas concordaram comigo que:

1) As mulheres coletivamente não se apoiam de verdade (mesmo nos grupos de mães há muito julgamento e no de networking, competição); e

2) As mulheres estavam perdendo suas características de acolhimento e cuidado.

Na busca de referências que pudessem me ajudar a trabalhar melhor esses aspectos, participei de um evento chamado “Tenda da Lua”, organizado pela especialista Pat Cuocolo. Nas tradições antigas, o Tempo da Lua era o momento do ciclo em que a mulher não estava apta a conceber e por isso, era considerado um período de descanso, no qual elas se recolhiam de seus afazeres cotidianos para poderem se renovar.

Um dos encontros da Rede Héstia. Ali, o objetivo é agregar mulheres pela afinidade e não pela competitividade.

Nos encontros da Rede Héstia o objetivo é juntar mulheres por empatia e não pela competitividade.

Sabemos que quando as mulheres vivem juntas, seus ciclos menstruais se regulam para que aconteçam simultaneamente. Assim, nesse período todas as mulheres da tribo se reuniam para um momento de reflexão coletiva, em que compartilhavam suas visões, sonhos e sentimentos, conectando-se às ancestrais e sábias da tribo. Também eram recebidas nessas tendas as meninas em seu primeiro ciclo menstrual, para que conhecessem o significado de ser mulher.

Com o passar do tempo, deixamos os rituais femininos de lado e paramos de nos conectar. Deixamos de compartilhar com outras mulheres esses momentos sagrados de fraternidade

Fiquei pensando em como poderia agregar mulheres que, como eu, também tinham esses questionamentos, para conversar sobre eles de forma aberta e sem julgamentos. Um lugar onde cada uma pudesse compartilhar sua busca ou seu encontro, apoiando e inspirando novas histórias.

Nesse momento, criei um grupo fechado no Facebook, chamado Rede Héstia, composto inicialmente por minhas amigas onde cada uma poderia dar seu depoimento, sem se preocupar com o modelo de sucesso das redes sociais (ou seja, ser sarada, bem-sucedida e feliz – não necessariamente nessa ordem).

A Rede Héstia é nova, tem poucos meses e já rendeu três encontros presenciais. Com ela, queremos discutir sobre a essência feminina, sem vínculos aos padrões de beleza ou regras pré-estabelecidas, estimulando a descoberta e aceitação da mulher como ela é e abrindo possibilidades para um mundo mais maternal, afetivo e sensível. Gostaria de agradecer a cada amiga que contribuíram, contribuem e espero que continuem contribuindo para que essa jornada seja cada vez mais rica

Vivo o início de uma longa jornada. Sei que estou apenas começando. E me sinto feliz a cada troca, a cada diálogo, pois eles não apenas me ajudam a me entender mais, mas me conectam às pessoas em um aprendizado sem fim. Vamos juntas.

 

 

Luciana Sato, 38, é publicitária e gerente de produtos, comunicação e campanhas de incentivos da Sodexo. Criadora da Rede Héstia, é casada, mãe do Vitor e da Julia. Tem amigos da vida inteira e outros novíssimos. Acredita gentileza e acha que o acolhimento e o amor são as melhores formas de se mudar o mundo. 

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