Conheça a padaria artesanal Sustenta CaPão, cujo modelo de negócio é transformar vidas

Isabela Mena - 14 out 2014
No Ateliê é tudo muito simples, e ao mesmo tempo cheio de riqueza
Isabela Mena - 14 out 2014
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Lixo e comida, dois conceitos à primeira vista opostos, são os pilares de uma padaria artesanal comunitária que é uma referência de empreendedorismo social em São Paulo. Há um ano, os irmãos José Carlos de Anunciação, 34, e Bruno Horácio Pereira dos Santos, o Bruno CaPão, 25, abriram o Ateliê Sustenta CaPão com um olho na gastronomia e outro na reciclagem. O lugar, que sempre atendeu com hora marcada, deu tão certo que agora está em reforma para aumentar de tamanho e dar cursos de panificação e confeitaria.

Bruno e José são do Capão Redondo, bairro que já foi um dos mais violentos do país, e a história de realização profissional deles passa — como poderia-se prever — por uma infância pobre e flertes com a criminalidade. Mas passa, também, pela fartura à mesa (mesmo nos períodos difíceis) e pelo papel transformador de alguns projetos sociais.

Os dois são filhos de Delma Pereira, 54, e têm três irmãos, Juliana, 35, Alice, 32 e Lucas, 29. Bruno é o caçula e único com pai diferente. Todos moraram grande parte da vida com mais 23 primos e sete tios na casa da avó, Ezelina Mamede, no Capão. Falecida em 2009, Dona Ezelina é uma referência forte na vida de José e Bruno: ambos creditam o cerne do Ateliê à sua comida farta e ao hábito de reunir a família em volta da mesa.

CaPao

Criador e obras, o sorriso aberto de José no Ateliê

José aprendeu a cozinhar com ela. Aos 12 anos fez seu primeiro bolo, uma receita da avó com goiabada e merengue. “Não deu muito certo no começo mas no fim ficou super gostoso”, conta. Pegou gosto, foi se aperfeiçoando e começou a aceitar encomendas. Aos 14, já trabalhava em uma padaria.

A esta altura Bruno ainda era bebê. Já criança, adorava brincar com objetos encontrados no chão. A casa em que moravam ficava no fundo de uma viela usada para descarte de lixo. “Era ali que eu brincava, pegava garrafa PET e ficava arrastando no chão, fingindo que era carrinho. Quando o caminhão passava para fazer a coleta era minha alegria. Eu achava mágico o caminhão levar a montanha de lixo embora”, conta Bruno.

José estudou até o segundo ano do ensino fundamental e seguiu aperfeiçoando o ofício da panificação na prática. Bruno, aos 14 anos começou a usar drogas, e aos 16, estava Febem (atual Fundação Casa). “Me desvirtuei o e abandonei meu sonho de ser coletor de lixo. Tive que pagar pelas escolhas que fiz”, diz. Foi preso por assalto, fugiu, se entregou e por fim conquistou a liberdade. Apesar de ter voltado para a escola, ainda patinava na vida.

O ano era 2007 e chegou ao Capão Redondo um projeto social, do empresário Marcelo Loureiro, para atender famílias em situação de alta vulnerabilidade como a de Bruno e José. O Instituto Rukha (palavra em aramaico que significa “sopro de vida”) funcionou até 2012 e oferecia um salário mínimo e acompanhamento de educadores e psicólogos aos moradores que participavam.

Bruno não quis saber. “Quando os educadores iam nos visitar, eu não queria nem ver. Quem são esses caras?”, ele dizia. Já o irmão, José, enxergou a oportunidade. Por meio do projeto Virada Social São Paulo, do Rukha, conseguiu emprego em uma das melhores padarias da cidade, a PÃO (Padaria Artesanal Orgânica), que começava as atividades na época.

“Eu era responsável pela produção de pães e bolos e doces e fiquei mais de três anos lá. Foi muito importante na minha vida, não só porque aprendi muito mas também porque foi através do Rafael Rosa (dono da PÃO) que consegui comprar o espaço onde hoje é minha casa e o Ateliê: com ele fiz três empréstimos, comprei o terreno e construí”, conta.

Nesse meio tempo, Bruno teve um filho, Breno, hoje com sete anos. Para sustentar a criança, foi trabalhar e procurou emprego na limpeza urbana. “A empresa pegava qualquer mão de obra e eu não sabia fazer nada. Podava árvore, varria ruas, carpinava e pintava guias”, diz. E também prestava atenção no lixo.

“Vi como em algumas áreas, como em Pinheiros, o recurso é abundante e as pessoas descartam tudo sem preocupação. Foi aí que comecei a observar o contraste social através do lixo”

Decidido a ganhar mais e a realizar o sonho de infância, de ser lixeiro, foi tentar uma vaga na empresa de coleta de lixo. Passou no processo seletivo e pediu para trabalhar na região em que morava. “Meu trabalho tinha um conceito, eu contribuía para a limpeza do bairro. Os caras mais antigos tinham vergonha de andar com o uniforme, eu achava o máximo, fazia questão”, conta.

MATURIDADE PARA SE FORMAR, E PARA EMPREENDER

Só aí Bruno permitiu que o Rukha entrasse na sua vida. O instituto tinha uma parceria internacional que pagava o curso superior para jovens líderes de comunidades. Bruno, que se formava em um supletivo, era muito ativo na Associação de Moradores do Capão. Ganhou a bolsa. Não por acaso, escolheu Gestão Ambiental, que cursou na Universidade Estácio de Sá. “O curso tinha tratamento de resíduos sólidos na grade de aulas e imaginei que fosse crescer dentro da empresa de coleta.”

Mas não foi o que aconteceu. Já formado, em 2012, Bruno não via mais oportunidade de crescer na empresa. O irmão, José, tinha saído da PÃO e passado por outras padarias e restaurantes. Ambos estavam em um hiato profissional. O estímulo para que finalmente juntassem a fome com a vontade de empreender veio da TV. Uma reportagem, que mostrava a PÃO, destacava justamente um bolo que tinha sido criado por José. “Fiquei emocionado, achei muito legal e pensei: se uma receita minha chegou até lá, a gente tem mesmo que arriscar num negócio próprio”, conta ele.

CaPao

Bruno, de boné, acena e convida: “Mão na massa e vem pra mesa”, um dos lemas do Ateliê.

No mesmo dia, os irmãos tiveram uma conversa definitiva, de onde saiu a ideia do Ateliê. “Falei pro Zé que o lado positivo do bolo dele estar naquela matéria provava pra gente o quanto era bom. E como eu tinha estudado sustentabilidade na faculdade, pensei em colocarmos tudo em prática aqui. Faríamos uma padaria artesanal, na comunidade, unindo gastronomia e sustentabilidade”, diz Bruno.

SUSTENTABILIDADE NA PRÁTICA

A sustentabilidade, que é social e ambiental, começou na reforma do quintal da casa de José. No piso foi feito um mosaico com pedaços de mármore descartados por um caminhão em uma favela nas redondezas. “Depois das pedras vieram plantas, vasos, cadeiras e o sofá, que foi revestido por um couro que também achamos”, diz José. “As pessoas não sabem, mas o lixo tem um potencial enorme, lixo é luxo. A gente pega uma coisa que está sendo jogada fora, pinta, customiza, melhora e põe em uso novamente. O Ateliê passou a se tornar real através disso.”

Ainda em fase de experimentação, ou soft opening, o Ateliê recebeu convidados ilustres, fruto da vivência dos irmãos em programs sociais. O jornalista André Gravatá, um dos autores do livro Volta ao Mundo em 13 Escolas que Bruno conhecera no Cieja (Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos) do Campo Limpo, aprovou o bolo que tinha aparecido na TV. Outro convidado dessa fase foi ninguém menos que Tião Santos, protagonista do documentário Lixo Extraordinário, de Vik Muniz, e um ídolo que Bruno conheceu em uma palestra.

A partir daí firmou-se a ideia de padaria artesanal comunitária, que atendia com reserva antecipada – uma página no Facebook centralizava os contatos e pedidos– para servir cafés da manhã e lanches da tarde. “É artesanal porque é tudo é feito com a mão. Temos pouco maquinário na produção e não há o escalonamento da padaria comum. É sair do tradicional”, diz Bruno.

E a mesa tem que ser farta, assim eram as da avó. Quem chega lá paga de 10 a 20 reais e desfruta de cinco pães artesanais variados, 10 a 12 bolos de sabores como cacau com gotas de chocolate, maçã, beterraba, banana, limão ou tangerina, pastas e geleias feitas com frutas da estação e quiches, além de café, leite, chás e sucos naturais.

“É para comer sem culpa. Na casa da minha avó ninguém passava vontade. E a mesa tem esse papel de ouvir as pessoas, de aproximar, e isso é uma coisa que a gente ter que manter viva”

Além disso, há uma produção diária de pão de mel que, por sinal, formou o capital inicial do empreendimento. Com a venda na comunidade, eles transformaram 70 reais em 200, eles compraram os ingredientes para os primeiros cafés. Eles também aceitam encomenda para festas. Para isso, contam com três ajudantes, além de uma funcionária especializada em vendas. “A comunidade consome 70% do que produzimos”, diz o padeiro José. “As pessoas gostam muito do nosso pão de mel porque é caseiro. Isso é uma das coisas que queremos ensinar para a comunidade, que é possível comer comida saudável”.

O sonho ficou grande e, desde maio, os dois fecharam as portas para reformar o espaço, e expandir as atividades. O investimento, de aproximadamente 24 mil reais, veio da doação de materiais de construção, por um empresário da área e que era ligado ao Instituto Rukha. A casa vai se transformar em um sobrado, e o novo andar abrigará uma escola onde os irmãos vão ensinar panificação, confeitaria, cidadania e empreendedorismo.

As obras começaram há poucos dias, e a previsão é de que terminem em três meses. Se tudo der certo, o Ateliê Sustenta CaPão reabre ainda este ano. A ideia é atrair cada vez mais pessoas, tanto de dentro quanto de fora da comunidade. José não vê limites para o seu propósito de vida: “Queremos que as pessoas de fora venham e participem, que haja uma troca. Todo mundo ganha e não é só no aspecto financeiro, é qualidade de vida, é evolução. Nossa comunidade está com braços e coração abertos a todos que queiram saber um pouco mais da nossa história”. E comer pão quentinho também.

 

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