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“Tem professor recebendo mensagem às 4 da manhã de aluno perguntando o que vai cair na prova que começa às 7h. É difícil!”

Anna Oliveira - 30 nov 2023
Francisco Pequê, criador do projeto Você Professor.
Anna Oliveira - 30 nov 2023
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Um professor foi espancado por um aluno na região metropolitana de Goiânia depois de pedir para o jovem parar de conversar durante a aula. Uma professora foi agredida pela mãe de um estudante dentro de uma escola em Embu-Guaçu, na Grande São Paulo. Uma professora recebeu tapas de alunos na cidade do Rio de Janeiro, que faziam um desafio da internet.

Tais episódios de violência ganharam os noticiários nos últimos três meses e estão longe de serem casos isolados. Na verdade, segundo pesquisa da Nova Escola em parceria com o Instituto Ame Sua Mente, oito a cada dez educadores sofreram agressão no ambiente escolar em 2023. Não à toa, seis em dez temem pela própria integridade física. 

Isso, somada a baixa remuneração e a pressão de movimentos ideológicos como o da “Escola Sem Partido”, faz com que a profissão perca o encanto que uma vez teve. Os resultados para o Brasil? Um apagão de professores e o ensino cada vez mais enfraquecido. 

“Além de um retorno financeiro baixo e de uma carga de trabalho alta, os professores ainda precisam lidar com ameaças de alunos, filmagens das aulas, pressão da família…”, diz Francisco Pequê, professor e gestor escolar. “O pensamento que vai se formando na cabeça dessas pessoas é: que profissão do inferno é essa que eu tenho?” 

A fala pode soar completamente desanimadora, mas não se engane: não se trata de uma sentença determinista de alguém que não vê futuro na educação. Pelo contrário, o profissional graduado em Engenharia Naval e Física, ambas pela Universidade de São Paulo (USP), se define como um “educador idealista”. Alguém que acredita, por exemplo, que é possível ter uma escola sem problemas — ou, melhor dizendo, planejar uma. 

“O objetivo é ter uma escola sem problemas, e eu digo isso como uma provocação. Eu sei que não existe, de fato, uma escola assim. O que quero é ajudar os coordenadores a construírem um plano para que eles não sejam pegos de calça curta. É sobre pensar em como construir um plano de ação. Como vou me organizar para lidar com os problemas?” 

Para transformar em realidade o que muitos podem enxergar como mera utopia, Pequê atua junto com educadores de todo o país por meio do Você Professor. O projeto, iniciado em agosto de 2022, oferece palestras, consultoria e uma comunidade virtual para educadores trocarem experiências — tudo isso com o objetivo de ajudar toda e qualquer liderança escolar a fazer seu trabalho de gestão e desenvolver projetos visando construir uma escola sem problemas.  

O desafio, claro, não é pequeno e o educador, mesmo sendo idealista, sabe disso. As marcas deixadas pelo período pandêmico ainda se fazem presentes, tanto nos alunos, quanto nos professores. 

Só a rede estadual de ensino de São Paulo registrou, nos seis primeiros meses deste ano, um total de 20 173 professores afastados por questões relacionadas à saúde mental, um aumento de 15% em comparação ao mesmo período de 2022. Para acrescentar uma camada de complexidade à missão, um levantamento do Instituto Semesp divulgado no segundo semestre do ano passado mostrou que o Brasil corre o risco de enfrentar um apagão de professores na educação básica em 2040. A projeção é de que faltarão 235 mil docentes nas escolas do país. 

Para compreender melhor o tamanho do desafio e algumas possíveis soluções, confira a entrevista do Draft com o idealizador do Você Professor.


Algumas pesquisas recentes mostram a piora da saúde mental dos professores. Na sua opinião, o que está por trás desse cenário?
Parte disso, na minha opinião, tem a ver com o fato de ainda vivermos os efeitos da pandemia. 

Uma das coisas que a pandemia trouxe para a população como um todo é essa “quebra do espaço-tempo”: você pode trabalhar de qualquer lugar e a qualquer momento. Só que, em contrapartida, diversos profissionais sentiram uma sobrecarga, inclusive os professores. 

Antes, o professor tinha um turno em sala de aula e, digamos, um contraturno fora dela — aquele momento de preparar a aula, corrigir provas, preencher o diário de classe… 

Esta parte “extra” não deixou de existir, o que mudou foi que o turno de sala de aula se expandiu. Os alunos passaram a ter o WhatsApp do professor e isso passou a ser um problemaço para ele porque estava o tempo todo sendo acionado 

Tem professor recebendo mensagem às 4 horas da manhã com aluno perguntando o que vai cair na prova que começa às 7h, por exemplo. É difícil!

Os episódios de violência nas escolas também têm contribuído não só com a piora da saúde mental dos educadores, mas com a evasão de professores?
Não acredito que a violência gere evasão, porque tanto o professor quanto o gestor não podem ficar desempregados. Eles não podem simplesmente largar a escola porque o reposicionamento no mercado de trabalho não é tão fácil, não é fácil trocar de sala de aula no meio do ano. 

O que eu vejo é que esses episódios de violência contribuem com a piora da saúde mental: crises de síndrome do pânico, mais ansiedade, quadros de depressão e “n” outras questões. 

Então, a pessoa não pode largar o emprego, só que, ao mesmo tempo, precisa conviver com o medo e com um sentimento de insegurança ao longo da sua jornada – algo que não era para acontecer 

Você não espera que a escola seja esse ambiente onde um ex-aluno chega armado e faz uma coisa como aquela que aconteceu no Paraná e tantos outros lugares no Brasil. 

Como você ajuda os gestores escolares a lidarem com situações dramáticas, como episódios de violência na sala de aula?
O que estamos vendo hoje é uma série de problemas complexos, com os quais as escolas, de forma geral, não estão preparadas para lidar. 

Até porque, se você parar para pensar, a escola, lá atrás na sua origem, não era um lugar onde tinha esse tipo de coisa — violência, atentados… Mas, infelizmente, essa é a realidade hoje e o papel do gestor escolar é estar inteirado da conjuntura atual. 

Como líder, esse gestor precisa entender o contexto no qual a escola está inserida e os possíveis desafios, problemas e riscos. É papel da gestão desenvolver planos de ação e instruir os professores para que estes também saibam lidar com diferentes situações, o que acaba sendo uma forma de passar segurança para esses profissionais. 

Não tem como o gestor escolar saber tudo o que vai acontecer, mas ele pode, sim, criar medidas de segurança, dar orientações para capacitar e acalmar a sua equipe. Só que isso demanda planejamento.

Organização é um dos pilares trabalhados no Você Professor. O que mais é necessário desenvolver nos gestores escolares para que eles estejam aptos para lidar com a complexidade atual?
Eu costumo brincar que qualquer problema da gestão escolar pode ser resolvido com base na mudança de mentalidade e na organização. 

O primeiro ponto, da mentalidade, tem a ver com o gestor parar de pensar que está ali como professor de alunos. Claro, lidar com os estudantes é parte do trabalho, mas o papel é muito mais na linha de ser um “professor de professores”. Ou seja, é necessário orientar tais profissionais, apoiá-los, estar próximo a eles. 

Se antes, a pessoa fazia cursos para atualizar o conhecimento sobre a sua área de especialização ou sobre pedagogia, agora ela precisa entender de temas mais ligados à gestão. O que vai ajudar no segundo ponto, o da organização. 

O que eu costumo ver é que ou os profissionais não sabem se organizar ou, então, caem no extremo oposto: só organizam, planejam, programam, mas nunca executam 

Na área da educação, quase tudo se repete: a grade de disciplinas, as rotinas do ano letivo, enfim, diversos processos. Isso significa que dá para fazer as coisas com uma certa calma, repetir processos, mudar o que não funcionou no ciclo anterior, reestruturar… Organizando tudo isso, sobra tempo para que os gestores, por exemplo, construam aqueles planos de ação para evitar possíveis problemas.

Para ajudá-los, eu apresento algumas ferramentas usadas nas rotinas corporativas, como a Daily Scrum [uma reunião diária e rápida de atualização de escopo de trabalho], e também compartilho conteúdos práticos, por exemplo, sobre como se preparar para uma reunião. 

A partir disso, conseguimos nos organizar para, então, começarmos a levantar dados, identificar indicadores, usar métricas — o que é fundamental para lidar com as principais dores desses gestores. 

Quais seriam elas?
São três pontos e o primeiro deles é o baixo tempo que o aluno fica na escola. Se a sua escola não consegue ter projetos legais e desenvolver atividades bacanas, se ela não tem professores engajados, se o ambiente não é bom, o número de alunos acaba caindo. 

E, aí, vira uma bola de neve: a escola perde dinheiro, não tem condição financeira de fazer projetos mais robustos, de pagar melhor os professores e assim por diante. O gestor escolar entra em um vórtice que o joga para o fundo 

Por isso, é importante que o gestor saiba por quanto tempo o aluno fica na escola e, se for o caso, melhorar esse índice de retenção. 

A segunda dor é o que o mercado chama de “custo de aquisição do cliente”. Correr atrás de novas pessoas é muito mais caro do que fazer campanhas e projetos de permanência de quem já está na sua escola. Como em boa parte dos negócios, fidelizar é mais barato do que captar. 

E esse é o ponto: se temos melhores gestores, esses gestores conseguem desenvolver projetos melhores para ter alunos mais engajados e pais mais satisfeitos, fazer uma administração mais eficiente para ter professores mais motivados. 

Ter professores motivados, aliás, é uma das coisas que ajuda a evitar a terceira dor: o alto turnover de educadores 

Se alguém olha para a escola do lado e migra porque a estrutura de onde está não é organizada, porque o trabalho atual não o motiva ou qualquer outro motivo parecido, isso é um problema. 

Como você ajuda os gestores a lidarem com tais dores?
O primeiro passo é a anamnese, entender o estado do lugar para fazer uma proposta de intervenção ativa lá dentro. Para isso, a direção do colégio responde um questionário que tem como objetivo conseguir um raio-x da escola. 

Depois, sigo para a etapa de entrevista: sento com esse gestor e converso sobre as visões de presente e futuro sobre a escola, seus colaboradores e seus alunos. Com base em todas essas informações, construo uma proposta de trabalho, com objetivos bem definidos, indicadores estabelecidos e um plano de ação detalhado. 

Qual é o meu sonho? Se eu conseguir formar essas pessoas, capacitá-las para lidar com toda a complexidade do ambiente escolar e do seu entorno, consigo chegar lá naquela meta da escola sem problemas

Ou, na verdade, uma escola que consegue se antecipar aos problemas. Com isso, eu aumento o tempo de permanência dos alunos na escola, tenho um melhor fluxo financeiro porque já não é preciso ficar gastando tempo e energia na captação constante de estudantes, e a rotatividade de professores cai. 

Nesse cenário, o gestor tem uma estrutura mais organizada e que só precisa de manutenção, o que permite que ele se dedique a outros projetos. 

Como ao projeto do Novo Ensino Médio, certo?
Quando não existe toda essa organização que eu comentei, é difícil colocar em prática de forma eficiente um projeto complexo como o do Novo Ensino Médio. É pedir muito para uma liderança escolar que já está sofrendo com a rotina. 

Além de tudo o que ela já precisa fazer, ainda terá que montar um novo calendário, estudar a nova organização da grade horária, encaixar os professores nas trilhas…

Acho que é necessário tornar o Ensino Médio mais contextualizado, a ideia é legal e acredito que, sendo colocada em prática da forma correta, trará bons resultados. O problema é que todo o processo por trás é muito ruim. Fizeram um top-down onde as escolas vão ter que executar esse projeto, mas não existem orientações claras e condições adequadas.

Eu participei de uma live com 500 gestores escolares e algumas Secretarias de Educação de diferentes estados, e elas pareciam perdidas. Sabe quando você vê que a pessoa não tem segurança na proposta? 

A sensação que me deu é de que o Ministério da Educação estabeleceu um novo modelo, repassou para as secretarias, que repassaram para as escolas, mas, no fim das contas, ninguém sabe muito bem ao certo como executar o projeto.

E falando em novos modelos, como está o uso da inteligência artificial generativa, como o ChatGPT, nas escolas? Existe um receio dos educadores sobre o impacto que essa ferramenta pode trazer sobre a educação?
Acho que o boom do ChatGPT bagunçou o cenário de muitas profissões, né? No caso da educação, veio o medo do professor e dos gestores sobre como isso interferiria na rotina de sala de aula. 

Eu particularmente não acredito que a tecnologia substitua uma pessoa, o que acho que acontece é que, quando um profissional não se atualiza, ele acaba fazendo um trabalho que uma máquina, de alguma forma, consegue entregar. Daí a importância de conhecer as novas ferramentas.

Então, o que eu comecei a ouvir nas escolas sobre o ChatGPT foi: como vamos fazer uma prova? Como garantir que a redação ou o trabalho foi produzido mesmo pelo aluno? 

Porque, agora, tem uma ferramenta que consegue fazer isso pelos estudantes, entregando um texto com uma linguagem muito parecida com a humana. A cola sempre existiu, só que ganhou outra cara! Não é mais a cola de aluno com aluno, é muito mais rápida, mais fácil.

Eu fiz um trabalho em uma escola para pensarmos juntos sobre como usar essa ferramenta a favor dos educadores. Para isso, fui ler uma série de artigos e materiais produzidos por acadêmicos sobre o assunto e encontrei coisas muito interessantes, sugerindo, por exemplo, que o ChatGPT seja usado como um assistente para o desenvolvimento de atividades escolares menos engessadas. 

Então, se você fizer uma prova cuja uma das perguntas é “Quais são as 3 Leis de Newton?”, isso é facilmente respondido pela inteligência artificial. Sabendo disso, o professor pode usar o ChatGPT para testar outras questões. 

Será que, melhor do que perguntar algo que só requer que o aluno decore, não é mais interessante elaborar uma questão em que o estudante precise aplicar a informação aprendida? Por exemplo: “Como você usou a terceira Lei de Newton hoje no caminho para o colégio?”. Pronto, o chat não tem como responder isso, você vira o jogo 

Então, dá para fazer diferente, só que é necessário que os educadores saiam da sua zona de conforto. 

Nesse sentido, acho que a tecnologia pode ajudar a estimular a criatividade humana. Eu vi, por exemplo, um professor que organizou um debate na sala com o ChatGPT. Uma turma tinha que escrever os prompts para o ChatGPT entender a questão e gerar uma resposta, uma análise. 

Também vi um professor fazer um simulado de redação do Enem com o chat: ele escreveu a redação toda com a ferramenta e disse que daria um ponto para cada erro encontrado no texto gerado pelo chat. Esses erros são comuns de acontecerem e a ideia é estimular esse olhar atento dos alunos, fazendo com que eles entendam o processo por trás da ferramenta.

Tem muito gestor escolar e professor que, por ter dificuldade com tecnologia, travam certas inovações, mas as gerações estão mudando, os alunos são outros e é importante trazer essa modernidade para dentro da sala de aula.

Sobre o futuro da Educação, algumas pesquisas sugerem um apagão de professores em 2040. De acordo um levantamento do Instituto Semesp divulgado no segundo semestre do ano passado, a projeção é de que faltarão 235 mil docentes nas escolas do país. Na sua visão, o que deveria ser feito agora para evitar esse futuro?
Esse é um problema sério e a resposta para ele não é simples, mas passa pelo resgate da valorização do professor. 

O que acontece é que a cultura no Brasil passou por diversas mudanças nos últimos anos, credos e crenças um tanto quanto doidas que impactaram inclusive na visão sobre a educação e, por consequência, sobre o papel do professor. Esse profissional acabou sendo muito depreciado. 

Então, o que acontece hoje é não só uma desvalorização que se reflete na remuneração do professor, mas no questionamento sobre o papel do educador. Isso aparece, por exemplo, nos pais questionando professores e colégios, querendo determinar o que pode ou não ser discutido em sala de aula 

Parece que as famílias entraram em uma onda de superproteção com os seus filhos, querem que eles vivam em uma bolha e, nesse embate, o professor acaba tendo que encarar certas coisas que, até pouco tempo, ele não precisava lidar. 

Ele vai dar uma aula de história ou de geografia em que, invariavelmente, são discutidos temas políticos, e isso se torna uma dor de cabeça para ele porque surge a família questionando por que determinada questão está sendo abordada em sala de aula. E a resposta deveria ser simples — porque está no currículo, porque é obrigatório —, só que não é. 

Não à toa temos hoje materiais paradidáticos usados em casa que falam da “Revolução de 64” em vez de “ditadura”, que só abordam a teoria do criacionismo, deixando de lado Darwin.

E o resultado que temos é esse: além de um retorno financeiro baixo e de uma carga de trabalho alta, os professores ainda precisam lidar com ameaças de alunos, filmagens das aulas, pressão da família… O pensamento que vai se formando na cabeça dessas pessoas é: que profissão do inferno é essa que eu tenho? 

Por isso que, no projeto Você Professor, olho para a questão da capacitação. É uma forma de dar um ferramental técnico e comportamental para os educadores, ajudá-los a lidar com temas tão complexos e resgatar o valor que o Ensino uma vez teve nesse país. 

 

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