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“Todo mundo tem problema de pele”: ela fundou uma startup que usa nanotecnologia na produção de cosméticos para peles sensíveis

Bruno Leuzinger - 13 mar 2025
Cynthia Nara, fundadora da Pele Rara.
Bruno Leuzinger - 13 mar 2025
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Esbanjando simpatia e sotaque mineiro, Cynthia Nara abre a apresentação na tela do  computador. O slide mostra duas imagens de um corte transversal da pele, ampliado por microscópio.

“Esses são cortes da pele do mesmo paciente”, explica ela em entrevista ao Draft por vídeochamada. “Num, a gente usou a Pele Rara e no outro, não. Essa derme [sem o produto] é totalmente fragmentada, cheia de buraquinhos, e aí você tem pouca reepitelização. Já essa derme aqui é muito mais empacotada, muito mais resistente, aí você tem esse tanto de reepitelização, ó, muito maior…!”

Cynthia, 35, é a fundadora da Pele Rara, uma biotech baseada em Belo Horizonte que aplica nanotecnologia ao desenvolvimento de hidratantes, sabonetes e espumas.

“A gente criou uma partícula que é tão feita para entrar dentro da sua célula, que na hora que você [deixa de usar o produto e] não tem esse tipo de tecnologia, a pele sente” 

As fotos no site (de clientes de verdade, segundo Cynthia) incluem uma pessoa albina, outra com vitiligo e ainda outras que realizaram mastectomias em decorrência de um câncer ou como parte de uma transição de gênero. 

Além de celebrar a diversidade, essas escolhas reforçam a indicação do produto para peles sensíveis. Mas, no fundo, “todo mundo tem problema de pele”, diz Cynthia. A começar por ela própria e sua família.

O FASCÍNIO DE CYNTHIA PELOS MISTÉRIOS DA PELE COMEÇOU AINDA NA INFÂNCIA, COM UMA IDA AO DERMATOLOGISTA

Cynthia despertou para as maravilhas e os mistérios da epiderme ainda na infância, quando, aos 6 anos, acompanhou a mãe e a irmã numa consulta ao dermatologista. 

A família vivia em Bom Despacho, pequena cidade de Minas Gerais. Cynthia foi à consulta porque tinha um carocinho debaixo do queixo. A verdadeira preocupação, porém, era com a sua irmã: 

“Começou a nascer uma mancha nela, do nada, no cantinho da orelha. E foi crescendo, tipo um bicho geográfico, pra cima, pra baixo, pra frente…”

O caroço de Cynthia era apenas um cravo, que o dermatologista ensinou a menina a espremer. Quanto ao diagnóstico da irmã, numa segunda consulta, sem as crianças, o médico explicou à mãe que a mancha tinha fundo emocional (por conta, descobriu-se, de uma mudança recente de escola).

A sugestão do médico foi que a família adotasse um cachorrinho para ajudar a irmã de Cynthia a lidar com a tristeza. Deu certo. “Em uma semana, a mancha dela sumiu”, lembra.

MESMO APROVADA EM MEDICINA, ELA ESCOLHEU OUTROS CURSOS JÁ PENSANDO EM ESCALAR O IMPACTO DO SEU TRABALHO

Cynthia cresceu com um fascínio pela dermatologia, às voltas com sua própria pele acneica e a psoríase, também de fundo emocional, que volta e meia acometia seu pai e seu irmão.

Na hora do vestibular, quando foi aprovada em medicina, o seu futuro parecia estar traçado. Porém, numa decisão surpreendente, Cynthia decidiu recusar a vaga:

“Eu falei: gosto de medicina, até faria medicina… Mas ao mesmo tempo eu queria conseguir escalonar a minha ajuda… Eu queria ajudar milhares de pessoas – em vez de fazer uso das minhas horas limitadas só pra ajudar algumas”

O impacto de um(a) dermatologista estaria de alguma forma limitado a seu número de pacientes. Para alcançar mais gente, a jovem vislumbrava outro caminho – um caminho que mais tarde a levaria a combinar pesquisa acadêmica e empreendedorismo tecnológico.

Em vez de Medicina, Cynthia resolveu cursar – em paralelo – Farmácia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Estética & Cosmetologia no Centro Universitário Newton Paiva. Foi preciso garra para encarar essa dupla jornada: 

“Eu ficava na Farmácia de 7h às 17h, daí pegava ônibus, atravessava Belo Horizonte e ia para a Estética, e ficava das 18h às 23h”

Na Farmácia, Cynthia adquiria bagagem acadêmica da parte de produto, desenvolvimento químico; na Estética, um curso técnico, aprendia sobre a aplicação desses cosméticos por uma pegada de empreendedorismo. Havia, também, diferenças de público:

“Na UFMG, eram pessoas de classe média alta, tinha uma galera que ia de BMW… Na Estética, à noite, a realidade era outra: mães solteiras que de dia ficavam com os filhos, donas de salão de beleza que queriam aumentar o faturamento, manicures querendo se aperfeiçoar…”

A PEDIDO DE UMA PROFESSORA, CYNTHIA DESENVOLVEU UM CREME PARA PREVENIR LESÕES EM PACIENTES ACAMADOS

Inspirada por seu próprio problema de pele, Cynthia abordou a acne no seu Trabalho de Conclusão de Curso de Estética. 

“A acne é um desafio grande, porque ela tem vários fatores: o emocional, o hormonal, o fisiológico, o microbiano… Até a microbiota da pele interfere na gravidade”

No TCC de Estética, aproveitando conhecimentos adquiridos no curso de Farmácia, ela desenvolveu um estudo de caso com uma paciente real, testando o uso de extratos naturais na redução da acne. 

Enquanto isso, na UFMG Cynthia atuava como monitora de tecnologia de cosméticos. Um dia, uma professora que era dermatologista e fazia voluntariado na Associação Mineira do AVC (AMAVC), em Lagoa Santa, na Grande BH, lançou um pedido-desafio: “Cynthia, você que fica aí na bancada fazendo um monte de creme… Faz uma pomada pra mim? A gente está com tanta dificuldade com os pacientes com escaras…”

Escaras são lesões (também chamadas de úlceras de pressão) que acometem pacientes acamados, impossibilitados de realizar movimentos. 

“Depois de uma semana, a pele já começa a sentir muito. Nas protuberâncias ósseas – cotovelo, quadril, calcanhar –, o fluxo de sangue fica prejudicado, o oxigênio não chega ali, aí abre uma feridinha que começa a crescer muito rápido…”

Mergulhada nos estudos, Cynthia vinha com uma bagagem fresca na cabeça sobre extratos com potencial regenerativo. Ela abraçou a missão e criou o creme para prevenir escaras. Meio sem saber, estava criando também o primeiro protótipo de sua futura empresa.

UM ANTÍDOTO PARA A DESESPERANÇA: O CREME CRIADO POR CYNTHIA SURPREENDEU NO TRATAMENTO DA RADIODERMATITE 

O creme de Cynthia fez sucesso. “Deu tão certo para [prevenir] escaras que os próprios dermatologistas que estavam acompanhando aqueles pacientes levaram a fórmula para o Hospital da Baleia, que é referência em oncologia aqui do SUS em BH.”

Dermatites severas são um dos efeitos colaterais que frequentemente afetam pacientes em radio e quimioterapia. O tratamento pode até estar funcionando, mas as lesões acabam ferindo, além da pele, a autoestima dos pacientes, comprometendo sua recuperação. 

“Quando a pessoa começa a perder cabelo, se sente fraca, já dá um baque. Agora, quando a pele abre ferida, é um baque maior ainda. ‘O câncer está ganhando…’: essa é a sensação que os pacientes têm”

O creme criado por Cynthia chegou como um antídoto para essa desesperança. Ela recorda uma visita ao hospital, para ver pessoalmente, a convite dos médicos, o efeito de seu creme na prevenção e tratamento da radiodermatite:

“Eles falavam: ‘ó, a dona Marlene está vindo aqui, a gente teve que aumentar a dose da radiação, então não se assuste, o seio dela está muito lesionado…’. E eu respirei fundo, aí entrou a dona Marlene, ‘Olha aqui, doutor, está ótimo!, não deu nada, tenho certeza que eu vou vencer, eu vou vencer!’…”

Como a pele resistia, a paciente se sentia mais forte e confiante, diz Cynthia:

“Eu via que o produto não era só bom quimicamente, tecnicamente, de performance, mas também dava essa qualidade de vida durante o tratamento, em que o paciente não perde a fé na cura. E isso é muito maior”

Essa constatação fortaleceu o seu propósito que já vinha lá de trás, quando ela desistiu de cursar Medicina apostando que, com outras formações, poderia impactar mais gente.

“Quando o médico diz, ‘Cynthia, vem ver o que o seu creme está fazendo…’, essa frase motiva a minha carreira inteira. E aí você tem mais fôlego para ir pra bancada e realmente fazer tudo o que tem que fazer.”

ACADÊMICA E EMPREENDEDORA, ELA PRECISOU EQUILIBRAR O TRABALHO À FRENTE DE SUA CONSULTORIA COM A DEDICAÇÃO AO MESTRADO

Cynthia se formou em Estética em 2014, e em Farmácia no ano seguinte.

“Quando saí da Farmácia, tive oportunidade de trabalhar com registro de produtos, com a parte regulatória. Era uma empresa da Rússia que queria trazer uns produtos para o Brasil, e me pediu ajuda pra fazer as documentações.”

Ela topou e resolveu tirar um CNPJ para atuar como consultora. Batizou sua primeira empresa de Sympol Biotecnologias

O cliente da Rússia decidiu trazer parte da produção para o Brasil e pediu apoio para ajustar sua fórmula a exigências locais. Assim, a atuação da consultoria foi encorpando:

“Fui montando um laboratório de desenvolvimento e pesquisa para outras empresas, que terceirizavam o P&D comigo… Desenvolvi fórmula agrícola, veterinária, na área farmacêutica, de cosméticos…”

Ainda em 2016, quando começava a atuar como consultora, Cynthia havia trocado BH por São Paulo. No ano seguinte, nova mudança: “Em 2017, passei na USP e fui para Ribeirão Preto. Fiquei três anos lá fazendo mestrado [em nanopartículas de extratos naturais]”.

Ela tocava o mestrado e a consultoria em paralelo. Foi se capitalizando — e também se capacitando para voos maiores:

“Ganhei uma experiência muito grande de lidar com clientes e de vender produtos e serviços que não são fáceis — você leva um tempo para desenvolver, testar, escalonar…”

DE VOLTA A MINAS, CYNTHIA INSTALOU A SYMPOL NUM PARQUE TECNOLÓGICO E TIROU DE VEZ O PROJETO DA PELE RARA DO PAPEL

Aprovada no doutorado, Cynthia se preparou para retornar a Minas e procurou parques tecnológicos para abrigar a Sympol. Ela conta que foi aprovada como residente nas três opções disponíveis: BH-TEC, Biominas e BiotechTown.

“Achei que o BH-TEC tinha mais fit comigo, porque é um parque tecnológico da UFMG, onde eu iria estudar. Então, a Sympol está lá desde 2021.”

Spin-off da Sympol, a Pele Rara começou a engrenar naquele período, ainda durante a pandemia. Na época, sem esse nome e como um trabalho voluntário, inspirado pela experiência com o creme que Cynthia havia criado lá atrás, a pedido da professora. 

“Eu desenvolvia a fórmula, mandava fazer numa farmácia de manipulação e doava. Os médicos ficaram malucos… E os pacientes também: ‘Cynthia, por favor, me dá mais…’”

Naqueles longos meses de isolamento social, Cynthia passou a pensar no projeto de uma maneira mais estruturada. Criou a marca Pele Rara e, aproveitando a experiência com a Sympol, recorreu a uma indústria terceirizada para produzir um primeiro lote em escala. 

“Lancei [o primeiro lote] e praticamente doei tudo. Os médicos falavam, ‘olha, Cynthia, esse produto é muito importante, tem que estar no mercado…’”

Era hora de profissionalizar, fazer daquilo um negócio. Cynthia decidiu que o segundo lote visaria lucro e chamou o irmão, administrador, para criarem um business plan.

AO IMITAR A NATUREZA, A TECNOLOGIA CONSEGUE “ENGANAR” AS CÉLULAS E INCREMENTAR A ABSORÇÃO DAS NANOPARTÍCULAS

A Pele Rara foi lançada de fato em 2022. “O segundo lote foi um sucesso, vendeu tudo, eu fiquei sem produto”, diz Cynthia. “A gente está sem estoque desde agosto [de 2024]. Fui atrás de investidor, reformulei e dos dois produtos que eu tinha, fiz 11.”

O portfólio que está sendo lançado agora se desdobra em duas tecnologias desenvolvidas por Cynthia. Na primeira, batizada de BioCic, estão os produtos de hidratação.

“Fiz uma nanopartícula e dentro encapsulei óleo de girassol, óleo de rosa mosqueta, além de vitamina E, e mimetizei a superfície celular, porque na hora que ela entra em contato, as células não entendem que é um corpo estranho e automaticamente põem a nanopartícula pra dentro”

Esse uso da biomimética, diz a empreendedora, se traduz na performance do produto. “Quando você passa um grama de creme da Pele Rara, você está distribuindo na pele um trilhão de gotículas com esses óleos. Na hora em que a célula entra em contato com isso, ela absorve rapidinho: em vinte minutos, 80% das partículas já foram encapsuladas.”

A linha BioCic inclui hidratantes faciais e corporais, versões 50+ (“coloquei um residual mais oleoso e um polímero de aloe vera para deixar uma superfície protetora, porque a pele mais envelhecida perde muita capacidade de retenção de água”) e outros itens. Já os produtos com a tecnologia BioBloc são dois sabonetes corporais e duas espumas.

“Nosso sabonete mata mais bactérias do que o sabonete normal. E a nossa tecnologia de limpeza não agride tanto a pele quanto os sabonetes normais, que têm o pH ou neutro ou alcalino – ou seja, 7 ou mais que 7. A pele tem um pH 5,5, então é bom para a pele voltar para esse pH mais ácido”

Ela explica a importância da acidez natural do pH da pele humana, que funciona como uma forma de defesa.

“Quando [a pele] está com muita acne, é um pH que está indo para a neutralidade: quanto mais neutro, mais as bactérias vão multiplicar… É por isso que o nosso pH é mais ácido, justamente para proteger de infecção bacteriana, fúngica… Os fungos e microorganismos, em geral, quanto menor o pH, é mais difícil de se multiplicarem.”

PARA DESENVOLVER E TESTAR SEUS PRODUTOS, CYNTHIA CRIOU UMA FORMA DE CULTIVAR A PELE HUMANA EM LABORATÓRIO

Desenvolver tecnologias de regeneração da pele envolve, claro, muito teste em laboratório.

Além de antiético, o uso de animais em testes para a produção de cosméticos, que sempre foi a praxe da indústria, hoje é proibido no Brasil. Cynthia explica como a Pele Rara atua:

“Criamos uma forma de cultivar a pele humana fora do corpo, então com isso a gente não mata nem um animal para fazer essa pesquisa; faz a feridinha na própria pele, corta, coloca o tratamento aqui na própria pele de diferentes pacientes, e aí vê no microscópio essa pele crescendo…”

Esse cultivo de pele humana para testes laboratoriais é feito a partir de sobras de tecido descartadas durante cirurgias plásticas — o que aliás ajuda a reduzir o lixo hospitalar. 

“Assim que o cirurgião tira a pele do paciente, eu pego essa pele e corro com ela para o laboratório. Consigo manter ela viva por até 75 dias. Nesse tempo, dá para testar coisas demais, principalmente cicatrização.”

À FRENTE DA BIOTECH, ELA VIU SUA ROTINA SE TORNAR MUITO MAIS COMPLEXA

A startup ainda está começando, mas Cynthia festeja os resultados até aqui. A começar pela satisfação dos clientes: 

“A minha recompra é de 41%. Ou seja, de 100 pessoas, 41 voltam, justamente pela qualidade do produto. Esse número é muito alto para uma marca nova de cosméticos.”

Além de vender online pelo site, direto ao consumidor, a estratégia comercial da empresa abrange o B2B, com foco em distribuidores que atendem grandes redes de drogarias, e o B2G, buscando validações para levar os produtos da Pele Rara para dentro do SUS.

Cynthia diz que vem dedicando sua atenção mais à Pele Rara do que à Sympol, na qual mantém no momento apenas dois clientes que têm fit com a biotech. E diz que a sua rotina ficou muito mais complexa:

“Hoje, estou fazendo estudos clínicos [no Hospital do Amor] em Barretos, no Hospital São Francisco, no Hospital da Baleia… Fora todo o dia a dia de uma empresa com produto: estoque, matéria-prima, todos os insumos, caixa, caixa secundária, bula, além de conversar com investidor, com representantes [de venda], treinar balconistas… A minha vida mudou completamente!”

Em paralelo, ela ainda atua como conselheira do BH-TEC. E conta, com orgulho: 

“Eles falam: ‘Cynthia, o nosso maior case é você!’. Tanto que sou a primeira conselheira mulher da história do parque tecnológico, que tem mais de 20 anos… Saí da academia e consegui romper a bolha do mercado. A Pele Rara é fruto disso.”

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