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Um cirurgião e um engenheiro criaram uma startup para combinar cuidado humano com IA e tentar reinventar a atenção básica de saúde

Marília Marasciulo - 14 abr 2025
O cirurgião Olívio Souza Neto (à esq.) e o engenheiro Victor Macul, fundadores da Ana Health.
Marília Marasciulo - 14 abr 2025
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Um cirurgião cardiovascular e um engenheiro de produção se uniram para fundar uma startup. Dessa parceria aparentemente inusitada nasceu a Ana Health.

Inspirados no NHS britânico e nas Accountable Care Organizations (ACOs) dos Estados Unidos, os sócios Olívio Souza Neto (o cirurgião, de 53 anos) e Victor Macul (o engenheiro, de 34) querem mudar a lógica do sistema de saúde brasileiro — que consideram ainda centrado na doença, e não no paciente ou no tratamento —, adotando uma abordagem mais proativa.

Fundada em 2021, a Ana Health não é um plano de saúde, nem uma empresa de medicina ocupacional, nem sequer um aplicativo. A healthtech se apresenta como um “benefício de saúde integral” (que engloba o bem-estar físico, mental, social e emocional). Segundo Victor:

“Gostamos de ver a Ana Health como se fosse uma amiga que é profissional da saúde. A gente entende a realidade da pessoa e ajuda ela a navegar no sistema de saúde”

Basicamente, o que a startup faz é acompanhar pacientes por WhatsApp, transformar conversas em dados e, com o apoio da inteligência artificial, sugerir planos personalizados (que vão da saúde mental à orientação sobre o uso de medicamentos). Tudo feito de forma remota por uma equipe de médicos, enfermeiros, psicólogos e gerontólogos.

Profissionais do seu time à parte, a Ana Health não mantém parcerias com médicos especializados, e tampouco com planos de saúde ou laboratórios de exames. Quando o paciente precisa ser encaminhado, a equipe ajuda a encontrar a melhor opção. Olívio afirma:

“Funciona como um concierge. A gente mapeia as unidades básicas de saúde perto da casa da pessoa” 

Hoje, a Ana Health atende cerca de 1 600 pessoas (que a startup chama de “associados”) em 23 estados e no Distrito Federal; a maioria são funcionários de empresas que contratam o serviço como benefício corporativo. Custa 120 reais por mês, com descontos progressivos conforme o número de usuários.

Entre os clientes estão escritórios de advocacia, startups de tecnologia, uma empresa de energia, uma fazenda orgânica no interior de São Paulo e, mais recentemente, o Anavilhanas Jungle Lodge, um hotel de luxo na Amazônia.

ENCANTADO PELO SUS, OLÍVIO ESTUDOU SISTEMAS DE SAÚDE DO MUNDO PARA TENTAR MELHORAR A SAÚDE INTEGRAL BRASILEIRA

Antes de se tornar um médico cirurgião com mais de 20 anos de experiência, Olívio cresceu em Juiz de Fora (MG), em uma família simples. Ele se recorda de precisar chegar cedo ao posto de saúde para entrar na fila de espera e, muitas vezes, sequer ser atendido.

Escolheu a faculdade de medicina “meio contrariado”— queria mesmo é ser médico veterinário, mas não havia curso perto de onde morava. E acabou na cirurgia também por acaso. “Fui chamado para ajudar em uma cirurgia cardíaca — e sentir um coração batendo na minha mão me encantou.”

Ao longo da carreira, Olívio sempre flertou com os sistemas de saúde universais. Em 2005, foi convidado para trabalhar na Inglaterra com cirurgias cardíacas minimamente invasivas, realizadas com apoio de vídeo. Lá, conheceu o NHS, o sistema britânico de saúde.

“Recebi uma carta em casa dizendo que eu precisava comparecer ao posto de saúde. Conversei com um psicólogo, que queria saber como eu estava me sentindo com minha família no Brasil… Aquilo me impressionou. Foi meu primeiro contato com a saúde integral”

O interesse virou objeto de estudos, que se transformou em admiração pelo sistema de saúde brasileiro. “O SUS é bonito, mas a forma como ele foi construído é muito mais interessante, pois tem um pensamento social magnífico”, diz Olívio, que ainda passou uma temporada na Alemanha, em 2010, para aprimorar os estudos.

Enquanto estudava políticas públicas por conta própria, ele pagava as contas com cirurgias super especializadas. Com outros colegas, ajudou a desenvolver uma técnica pioneira no mundo de cirurgia pela aréola.

“Deu muito certo. A primeira cirurgia foi pelo SUS em 2015. Na época, consegui manter tudo em um hospital público, onde reduzimos a fila de 400 para 40 pacientes.”

A PARTIR DO ENCONTRO COM VICTOR, ELE COMEÇOU A TIRAR DO PAPEL O SONHO DE FAZER UMA “EMPRESA SOCIAL”

Em 2017, Olívio foi convidado pela Prevent Senior para se tornar diretor de inovação.

Em termos de grana e estrutura, não havia do que reclamar. Mesmo assim, a experiência deixou um certo desconforto:

“Entreguei muita tecnologia e transformei a empresa. Mas ali acho que ‘vendi minha alma ao diabo’… Financeiramente, eram valores de jogador de futebol, tinha muito equipamento, mas fui descobrindo que o propósito era diferente do meu” 

Em 2020, o médico deixou a Prevent Senior para estudar gestão em um MBA executivo no Insper, em 2020. “Eu já tinha na minha cabeça que tudo aquilo que eu estava pensando sobre saúde integral podia ser uma empresa. Eu queria fazer uma empresa social.”

Foi durante um concurso interno que Olívio conheceu Victor. Engenheiro de produção com trajetória em design centrado no usuário, tecnologia assistiva e desenvolvimento de produto, Victor era coordenador do centro de empreendedorismo da Insper desde 2018. E relembra aquele encontro:

“O Olívio chegou com muita coisa formatada. Tinha um documento escrito com as inspirações do modelo do Reino Unido, das ACOs americanas. Muita coisa concebida”

Em vez de buscar investimento de partida, a dupla decidiu montar a operação com recursos próprios e a receita que viria dos primeiros clientes. Contrataram dois desenvolvedores para montar a parte de tecnologia e começaram a recrutar a equipe de saúde.

“Trouxemos um psicólogo e uma enfermeira, eu trabalhei como médico, depois conseguimos um segundo”, diz Olívio. “Fomos resolvendo um problema por dia e construindo uma plataforma para a equipe de saúde poder utilizar.”

COM A EQUIPE ENXUTA E UMA ESTRATÉGIA “WHATSAPP FIRST”, ELES CHEGARAM AO BREAK EVEN SEM INVESTIDORES EXTERNOS

Desde o início, a Ana Health foi concebida para ser 100% digital — e sem um aplicativo próprio.

A equipe decidiu apostar em uma experiência “WhatsApp first” e investir em design conversacional, ampliando os pontos de contato com os associados e permitindo que a jornada de cuidado aconteça com mais fluidez. Segundo Victor:

“Tudo isso facilita e aumenta o número de pontos de contato que a pessoa tem com a equipe de saúde”

O break even chegou um ano e meio depois da fundação. Hoje, a operação se sustenta e cresce organicamente. Os fundadores também se orgulham de manter uma gestão horizontal e de valorizar salários justos para a equipe de saúde, mesmo que com margens de lucro menores.

“A gente é muito consciente. Nunca dá o passo maior que a perna, não deve a ninguém, paga todas as contas”, diz Olívio. “Só demora um pouco mais para crescer.”

Ele diz que os fundos de investimento vêm procurando a startup, mas por enquanto nenhum deles despertou de fato o interesse da dupla:

“Temos um plano econômico bem desenhado, mas se falar para o fundo qual é a nossa margem, vão falar para tirar psicólogo, colocar uma margem bruta de 70% e virar unicórnio… E a nossa ideia não é essa” 

Eles preferem manter a autonomia e o compromisso com a proposta do negócio. “Queremos que os profissionais tenham salários atraentes e que a empresa seja autossustentável.”

A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL É VISTA COMO UM TRUNFO PARA ESCALAR O CUIDADO (E ALIVIAR A PRESSÃO SOBRE O SUS)

Acompanhar continuamente a saúde de milhares de pessoas exige escala. Na visão da dupla, é aí que entra a inteligência artificial.

Em parceria com pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a Ana Health vem focando no desenvolvimento de agentes inteligentes que ajudam a organizar a atuação das equipes.

A IA transforma conversas em dados, identifica sintomas e padrões, calcula níveis de engajamento e propõe planos de cuidado personalizados. O sistema usa modelos de linguagem treinados com dados clínicos, históricos de saúde e determinantes sociais, e os profissionais da empresa atuam como curadores das recomendações automatizadas, em um modelo “human in the loop” — em que os usuários colaboraram ativamente com o desenvolvimento e treinamento da IA ao interagirem com ela, fornecendo dados e feedbacks.

A Ana Health já recebeu recursos da FINEP (via subvenção) e da EMBRAPII para desenvolver essa frente de tecnologia. A expectativa é que, em breve, cada associado da Ana Health tenha um agente de IA dedicado, capaz de monitorar a saúde, sugerir mensagens e indicar quando é hora de uma nova interação com a equipe.

Outro sonho da empresa é ajudar a “despressurizar o SUS”, afirma Olívio:

“Somos um país muito carente de atendimento básico. Mas isso extrapola o SUS. É um problema de educação médica, que é muito intervencionista e carrega alguns vieses”

A longo prazo, a dupla espera que a Ana Health possa trabalhar em parceria com unidades básicas de saúde, prefeituras e operadoras, ampliando o alcance da atenção básica em territórios vulneráveis.

A PARCERIA COM UM HOTEL NA AMAZÔNIA MOSTRA COMO O ATENDIMENTO DIGITAL PODE IMPACTAR COMUNIDADES REMOTAS

Olívio e Victor citam a atuação junto a um hotel de luxo na Amazônia para  ilustrar como o modelo da Ana Health funciona na prática.

Na parceria com o Anavilhanas Jungle Lodge, a startup atende os funcionários do hotel e suas famílias – muitos deles moradores de comunidades ribeirinhas. Os atendimentos mais frequentes são voltados à saúde mental, um tema sensível em regiões isoladas: mais de 40% das demandas têm relação com ansiedade, depressão e insônia.

Um caso marcante envolveu uma funcionária que vinha enfrentando dificuldade para dormir e crises de ansiedade. O atendimento psicológico por vídeochamada, junto a mensagens motivacionais e um plano de cuidado personalizado, resultou em uma melhora na saúde emocional da mulher, segundo os empreendedores.

A solução também teria influenciado o bem-estar de outros colaboradores, que passaram a buscar atendimento. O efeito foi coletivo: ao verem os resultados, outros colegas passaram a buscar ajuda.

A experiência positiva levou os empreendedores a estenderem os serviços para outras 150 famílias ribeirinhas do local. Além do atendimento individual, a equipe ajudou a mapear as unidades de saúde da região e passou a oferecer suporte na navegação do sistema público. Victor afirma:

“O nosso objetivo é levar saúde integral para onde as pessoas estão, garantindo que mesmo comunidades remotas tenham acesso ao mesmo nível de cuidado de grandes centros urbanos. A tecnologia é uma ferramenta poderosa para tornar a saúde mais humana, acessível e eficiente”

Enquanto desenvolve seus agentes de IA e amplia a base de associados, a Ana Health segue operando com um mantra simples: cuidar bem de cada pessoa, um contato por vez.

“A tecnologia está aqui para facilitar”, diz Olívio, “mas o que transforma é o cuidado contínuo, feito com escuta e propósito.”

 

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