Você conhece a betara? O paru? E a clariana? Todos eles são peixes que não encontramos facilmente nos supermercados, mas que sustentam centenas de famílias que vivem da pesca artesanal no litoral do Paraná.
Foi para apoiar essas famílias que surgiu a Olha o Peixe. A empresa comercializa peixes e frutos do mar em parceria com pescadores e pescadoras locais, de forma avulsa ou através de um clube de assinatura, e empoderando as comunidades pesqueiras ao pagar um preço justo por seu produto.
O fundador Bryan Renan Müller, 32, resume a proposta:
“A pesca artesanal é marginalizada e os pescadores recebem pouco em todo Brasil. A consequência é o êxodo de jovens… Nosso objetivo é fortalecer a pesca artesanal e promover um consumo consciente de pescado”
Portanto, além de dar essa força para a pesca artesanal, a Olha o Peixe ambiciona mudar a lógica de consumo de pescados no país. Apesar de seus mais de 7 mil quilômetros de litoral, o Brasil ainda tem um consumo de pescado per capita abaixo da média mundial (segundo dados disponíveis no site do governo federal, o consumo anual no país é de 9 quilos por habitante, enquanto a média global seria de 20,5 quilos por pessoa por ano).
Para ajudar a mudar essa realidade (e ampliar o leque de opções de consumo), a empresa realiza um trabalho de divulgação, municiando o cliente com informações.
Pelo lado ambiental, a Olha o Peixe não comercializa espécies ameaçadas e tampouco aquelas em período de reprodução. Além disso, as embalagens são compostáveis, fabricadas pela Oeko Bioplásticos com resíduo de mandioca e milho.
Nascido e criado em Jaraguá do Sul (SC), Bryan conta que sempre se sentiu conectado com o mar. Nos fins de semana, seu pai o chamava para pegar estrada e ir pescar em São Francisco do Sul ou em Barra Velha, no litoral catarinense.
“De início eu nem gostava da parte da pesca, ia mais pela aventura de acordar cedo, preparar sanduíche pra viagem”
Quando chegou a hora de decidir seu caminho profissional, o rapaz conheceu o curso de oceanografia. Prestou vestibular na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e se mudou para Pontal do Paraná, cidade litorânea a 100 quilômetros de Curitiba.
Após se formar, ele conseguiu um emprego no setor de dragagem dos portos do estado. Porém, não estava satisfeito com o rumo que sua vida ia tomando.
“Sentia que precisava contribuir de alguma forma para as comunidades pesqueiras. Eu estava muito conectado com esse propósito – e o emprego me distanciava”
Bryan então pediu demissão e, alguns meses depois, entrou no mestrado em Sistemas Costeiros e Oceânicos, na UFPR.
“O foco da minha pesquisa foi segurança alimentar na pesca artesanal. Não se tratava só da questão nutricional, envolvia também a questão socioeconômica.”
Durante o mestrado, Bryan fez um mapeamento das comunidades pesqueiras do litoral do Paraná.
Sua intenção era compreender se os pescadores tinham acesso ao mercado e qual estrutura eles dispunham para desenvolver essa atividade.
“Eu estava diariamente nas comunidades e as conversas sempre convergiam para o mesmo ponto: a dificuldade de comercialização e a desvalorização da atividade pesqueira. Isso reflete diretamente na renda”
O empreendedor encontrou famílias de pescadores em situação de extrema pobreza. Um dos principais motivos é a dependência dos atravessadores, pessoas que fazem a intermediação com supermercados, restaurantes e peixarias.
“Os pescadores não têm autonomia sobre o próprio produto, e o comprador define o valor do peixe”, diz Bryan.
Outro motivo é a falta de condições estruturais, que dificultam a venda mesmo para cidades próximas. E assim, enquanto o salmão chileno desponta em qualquer gôndola refrigerada, o consumidor pena pra achar as espécies de sua própria região:
“Dificilmente você encontra uma espécie local numa peixaria. O consumidor não conhece as comunidades ou as espécies locais”
Intervir nessa situação poderia ser a chave para resolver algumas questões relacionadas à pesca artesanal do litoral paranaense.
“Fui conversar com os pescadores para perguntar se eles achavam que era uma ideia viável”, diz Bryan. “Também fiz pesquisa de mercado com consumidores finais e restaurantes de Curitiba para ver se realmente era uma necessidade”
Ele se propôs a ser o elo entre essas pontas e assim, em setembro de 2018, a Olha o Peixe levantou âncora para encarar o mar agitado do empreendedorismo.
No início, Bryan era um verdadeiro faz-tudo. “Eu só não pescava”, brinca.
Isso não significa que fez tudo sozinho: ele buscou orientação do Sebrae, da UFPR e de pessoas que trabalham na área. Também contou com apoio financeiro de diversas formas, às vezes meio no improviso.
“Um pescador me deu um isopor, uma amiga me emprestou o carro, outro amigo emprestou dinheiro. Começou desse jeito, com mais coragem do que razão”
Após seis meses, com o processo validado e maior domínio sobre os cálculos financeiros, Bryan começou a divulgar a empresa na capital paranaense. “Eu comprava o peixe, pagava as pescadoras para fazerem o filé, embalava na minha casa e levava pra Curitiba de carro.”
Quando o produto chegou na capital, começaram os problemas com estoque: nem sempre o dinheiro era suficiente para pagar as contas e manter uma reserva de pescado. Foi quando surgiu o clube de assinaturas.
“A ideia era que os assinantes do clube pagassem a mensalidade até o dia 10. Com isso, eu saberia a quantidade de peixe que eu precisava fornecer, o quanto eu teria que repassar para os pescadores e o lucro das vendas”
A proposta trazia previsibilidade não apenas para a empresa, mas para os pescadores.
O raio de entrega da Olha o Peixe por enquanto se resume à cidade de Pontal do Paraná, Curitiba e sua região metropolitana. Os pescados são limpos na mesma tarde em que chegam do mar e congelados em seguida para o envio à casa do consumidor.
O clube, hoje, é o carro-chefe da empresa, responsável por pelo menos 60% do faturamento. São 447 assinantes, com um ticket médio de 76 reais.
“Quem é do clube às vezes faz pedidos extras, então eu diria que os assinantes são responsáveis por 85% do nosso faturamento”
Ao se cadastrar, o cliente informa a região de entrega e escolhe o seu plano, entre três opções: básico (60 reais por mês, inclui até um 1 quilo de pescado); intermediário (100 reais, por até 1,5 kg); e master (140 reais, acima de 1,5 kg).
É preciso ainda definir o seu perfil. Aqui também são três modalidades: personalizada (para quem prefere decidir mês a mês os pescados que vai receber); prática (sempre os mesmos produtos); e desbravadora (para os curiosos, que desejam provar todo mês um peixe novo).
O cliente recebe sugestões de receitas, brindes e informações sobre a empresa e os produtos, além de indicações gastronômicas – como a intensidade de sabor de cada peixe (suave, moderado ou intenso), se o filé tem couro ou não e se é uma espécie com espinha.
Atualmente, a Olha o Peixe trabalha em parceria com 112 famílias da pesca artesanal, sem obrigação de exclusividade. O preço dos produtos é acordado com os pescadores – o que no começo até gerou estranhamento:
“Apesar de ser um parceiro, eu era uma pessoa de fora. E ninguém nunca tinha perguntado a eles: qual é o preço que você quer vender?.”
O empreendedor afirma que sempre se preocupou em pagar um valor justo:
“Quanto mais peixe na rede, mais tempo ele precisou para puxar essa rede, mais esforço físico, mais conhecimento, que é algo obtido ao longo dos anos, além de maior demanda de manutenção do barco, da rede… e isso nunca foi avaliado”
O preço pago aos pescadores pela Olha o Peixe se mantém fixo ao longo do ano (para garantir previsibilidade) e em geral é igual ou maior ao praticado na alta temporada por outros compradores.
Bryan dá como exemplo a carne de siri, que no verão alcançaria, segundo ele, o preço máximo de 32 reais (o quilo) no litoral paranaense, onde a Olha o Peixe atua:
“Iniciamos definindo o valor de 35 reais pelo quilo da carne de siri, entendendo que 32 reais garantiam o pagamento de todos os custos que eles tinham e ainda uma reservinha financeira para emergências.”
No início, o cenário da pandemia ajudou a impulsionar a empresa: com o fechamento do comércio, houve um salto no número de clientes.
Quando o coronavírus chegou ao país, aliás, a Olha do Peixe tinha acabado de receber um investimento-anjo (de Rudi Pelissari e Alexandre Amorim) no valor de 60 mil reais, em fevereiro de 2020.
Passado o período mais restrito da Covid-19, porém, as vendas recuaram, tanto pelo contexto de inflação quanto pela retomada do hábito da alimentação fora de casa. Assim, lucrar com o negócio é uma batalha ainda a ser vencida:
“Até então a gente ficou no zero a zero ou no vermelho porque é uma questão de mercado: se eu pago um valor mais alto, o custo vai ser mais alto”
De lá para cá, novos aportes trouxeram um respiro. Em 2021, a Olha o Peixe recebeu 100 mil reais da Ago Social, investidora de negócios de impacto socioambiental.
Recorreu também ao Programa Territórios Regenerativos, que busca contribuir com o crescimento de pequenas e médias empresas. Em 20 dias, foram captados R$ 98.049,91 com 53 investidores.
A Olha o Peixe tem hoje sete funcionários, divididos entre experiência do cliente, gestão de pedidos e entregas, marketing e financeiro.
Se o lucro ainda não veio, o trabalho tem gerado reconhecimento. Em 2020, a Olha o Peixe ganhou o Prêmio Natureza Empreendedora, da Fundação Boticário. Em 2021 e 2022, venceu o SESI ODS, na categoria Pequena Empresa do Paraná.
Em paralelo, Bryan lançou no fim de 2022 um braço da Olha o Peixe para oferecer cursos e palestras (sobre pesca artesanal, pescados locais, consumo consciente e sustentabilidade marinha), além de consultorias e capacitações.
A ideia é impactar desde associações de pescadores até donos de restaurantes, ONGs, empresas portuárias e secretarias de pesca – e acelerar a transformação que ele espera impulsionar através da Olha o Peixe:
“Trabalhar com empreendedorismo social não é fácil, porque já existe uma lógica de mercado e uma indústria consolidada. Quando a gente chega, a mudança não ocorre do dia para a noite”
Realmente, ser empreendedor(a) social é para os fortes. E se o foco está na causa, o fato é que qualquer negócio naufraga sem saúde financeira… Como diz o ditado, é preciso ter “um olho no peixe e outro no gato”.
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