O primeiro tapa na cara eu tomei quando Bolsonaro apareceu com 20% das intenções de voto na corrida presidencial de 2018.
Até então, para mim, ele era um deputado misógino, semiletrado, cujas bravatas violentas funcionariam como sua própria barreira de contenção em termos políticos.
Bolsonaro era um dos tantos exotismos que habitam o fundão – ou o centrão – do Congresso Nacional há muitos anos. Nada mais sério do que isso.
Eis o ponto: eu não levava a sério um cara que dizia que gostaria de torturar FHC, então presidente do país. Confesso que o confundia com Malafaia e Feliciano – outros nomes proparoxítonos e tóxicos
Sim, Bolsonaro começara a viajar pelo Brasil e havia uma dúzia de pessoas que simpatizavam com seu reacionarismo e iam saudá-lo nos aeroportos. Mas nunca imaginei que suas antipropostas e imposturas tivessem alguma chance de ultrapassar a barreira do bom-senso e da razão.
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Eu tomei o segundo tapa na cara quando Bolsonaro disparou nas pesquisas, com a prisão e a subsequente inelegibilidade de Lula. O capitão acabaria por se eleger presidente no segundo turno, com 57 797 847 de votos.
Percebi que a razão e o bom-senso não são maioria no Brasil. E que, sendo assim, tudo é possível. Até mesmo colocar na presidência um cara que prometia matar adversários, ameaçava mulheres com estupro e tinha como ídolo um torturador cuja predileção era seviciar mulheres na frente dos filhos delas.
Percebi que a história não anda sempre para frente. E que era otimismo – e, mais, ingenuidade – acreditar que os valores iluministas seriam inquestionáveis em pleno século 21. Coisas como a primazia da ciência, a separação entre Igreja e Estado, a salvaguarda dos direitos civis e das liberdades individuais – nada disso está garantido. É preciso muita luta para obtê-los. E mais luta ainda para mantê-los.
De alguma forma, na eleição de 2018, o sentimento antipetista foi arrebanhado por aquele discurso virulento e perigoso. Quanto mais claramente Bolsonaro dizia barbaridades, e prometia retrocessos, mais a turba gritava – “Mito!”
O brasileiro passou a aplaudir atrocidades. Talvez porque pela primeira vez alguém tinha a coragem de dizer em voz alta aquilo que boa parte das pessoas no país pensava intimamente, mas até ali se sentia constrangida de admiti-lo em público.
Bolsonaro soltava os cães raivosos – os seus e os de seus seguidores. Uma catarse virulenta. Um exercício de poder dos mais fortes sobre os mais vulneráveis.
Em 2018, sem que percebêssemos, uma linha importante se rompeu: 55,13% dos eleitores brasileiros tomaram a decisão de abrir mão da democracia. Ou, ao menos, de correr o risco real e imediato de que isso acontecesse.
Colocamos no poder um protofascista que achava que a ditadura militar brasileira tinha “falhado em não matar 30 mil pessoas” a mais, e que tinha como plano voltar com o Brasil “uns 50 anos no tempo, no mínimo”
Bolsonaro tinha, dizia-se, 25 milhões de votos que vinham da bala, da Bíblia e do trator – os bolsonaristas-raiz, por assim dizer. Gente disposta a romper com as regras da convivência democrática e dos valores humanistas, e a apoiar abertamente as falas autocráticas de Bolsonaro. A ideia do paraíso, para essa gente, era transformar o Brasil numa teocracia evangélica, militarizada, armada e rural.
Os outros 30 milhões de apoiadores do “Mito”, em 2018, viriam da aversão da sociedade civil aos casos de corrupção das administrações petistas revelados pela Lava-Jato.
Como a corrupção é mais antiga no Brasil do que o próprio país, supõe-se que havia aí também, na condenação seletiva que levava ao cadafalso apenas os corruptos ligados à esquerda, um tanto de preconceito de classe – um dos traços fundantes do Brasil são as tensões entre a Casa Grande e a Senzala, que ainda definem a marcha em nossa sociedade.
Havia igualmente uma tentativa de garantia de privilégios: qualquer proposta de tratar como iguais os subcidadãos que há séculos existem para servir às “pessoas de bem”, em troca de um salário de fome, será uma heresia condenada à fogueira e ao pelotão de fuzilamento.
No Brasil, não lavar a própria louça nem limpar o próprio banheiro é um marcador social histórico, profundo e inegociável.
É ainda notável que a ojeriza em votar no PT tenha conduzido, em 2018, a votos em Bolsonaro, que já atuava fora do terreno democrático com seu discurso de ódio e com sua visão autoritária de governo, e não em Amoedo, Alckmin, Ciro ou Henrique Meirelles, por exemplo, candidatos de centro e de direita naquela eleição
Você pode ser de direita. E privilegiar a liberdade econômica em detrimento da justiça social. E desejar um governo pequeno em vez de um Estado grande. E valorizar mais o equilíbrio das contas públicas do que o bem-estar dos mais pobres.
E, dentro da direita, você pode até ser um conservador, e não um liberal, e acreditar nessa estranha conjunção de total desregulamentação do mercado e da atividade produtiva, e de total regulamentação dos costumes e da vida privada.
Você só não pode abandonar o campo democrático e se filiar ao fascismo.
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O terceiro tapa na cara eu tomei ao descobrir que havia uma enorme corrente digital, abastecida com fake news, com uso profissional de robôs e algoritmos, construindo uma realidade paralela, demonizando adversários políticos, incitando o medo pelo país e transformando o debate em guerra civil, e a divergência em agressão.
Estabelecera-se uma bem urdida campanha em que mentiras eram apresentadas como verdade, e em que a própria realidade passou a ser questionada – em especial com o ataque à imprensa, que sempre ocupou (com todos os problemas possíveis) o papel de quarto poder e de observador isento, imparcial e objetivo dos fatos.
Ou seja: um áudio anônimo no Whatsapp passou a valer mais do que uma bem apurada reportagem jornalística. Um post no Facebook, com letras enormes e cores de filme de terror, passou a ter mais peso do que uma matéria no Jornal Nacional
Criou-se aí uma realidade paralela. Um clima feérico, de sonho – ou de pesadelo – em que as pessoas não sabiam mais o que era real e o que era fantasia. Ou melhor: as fantasias pessoais passaram a ser compartilhadas, e a virar “realidade”, numa espécie de alucinação coletiva.
Pior: as instituições que fundamentam a nação e regulam a vida em sociedade passaram a ser atacadas. Criou-se espaço para que cada um fizesse sua própria interpretação da lei. Ou seja: uma larga fatia da sociedade deixou de viver sob os parâmetros da civilização, e passou a abraçar o caos e a barbárie.
Gente com baixa instrução, com formação intelectual primária, com capacidade de cognição restrita (nós passamos décadas fabricando brasileiros assim) caíram rapidamente nessa armadilha.
Gente crédula, com senso crítico avariado, com pensamento mágico estimulado pela religião, disposta a ser conduzida pelo pastor como a uma ovelha, aceitou rapidamente acreditar nessas narrativas.
(Fé é isso – você não precisa de provas nem de dados nem de fatos para acreditar; você só precisar querer acreditar naquilo que é colocado à sua frente, e essa coisa, qualquer coisa, do terraplanismo ao Jesus sobre a goiabeira, vira um cânone inquestionável.)
Gente desgostosa da vida, em busca de encontrar um bode expiatório para seus problemas.
Gente intimidada pela complexidade do mundo contemporâneo, em busca de encontrar respostas fáceis para questões cada vez mais embricadas.
Gente com nostalgia de um mundo que lhes parecia mais simples e ordenado no passado (o mundo nunca foi assim).
Gente entediada com o próprio cotidiano e que está mais do que disposta a embarcar em uma trama cheia de “conspirações” e de atos de “bravura” e “heroísmo”.
Eis aí grande parte da audiência que elegeu Bolsonaro em 2018, que quase o reelegeu em 2022, e que agora acampa na frente de quarteis Brasil afora e vai a Brasília defecar sobre escrivaninhas e esfaquear murais de Di Cavalcanti.
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Eis, me parece, como chegamos a essa enorme tragédia nacional – o bolsonarismo, e seu dia de infâmia e de glória, no domingo, 8 de janeiro de 2023, com o ataque terrorista ao Palácio do Planalto, ao Superior Tribunal de Justiça e ao Congresso Nacional, em Brasília, por 4 mil vândalos que se autointitulam “patriotas”.
Esse movimento é muito maior do que Bolsonaro. O líder totalitário é apenas um catalisador do que há de pior entre nós, das nossas neuroses mais fundas – o grande problema, o desafio fundamental para a sociedade brasileira, é o totalitarismo em si
O fascínio da opressão. A sedução da ofensa. O gosto da perversão. O prazer da destruição. O gozo diante do sofrimento alheio.
Não estamos falando mais desse ou daquele político. Estamos falando de um conjunto de valores espúrios que recebeu, há pouco mais de dois meses, a aprovação de 58 206 354 de brasileiros – mesmo depois de todos os absurdos de um mandato que destruiu o país, das universidades e da defesa ambiental ao genocídio causado pelo Covid-19, responsabilidade direta de um governo que apostou na disseminação do vírus e na morte de centenas de milhares de pessoas como tática desumana e criminosa de contenção da pandemia.
Imagine, por um instante, que Bolsonaro nunca mais volte ao país. Ainda assim, teremos que lidar com milhões de brasileiros que continuam fechados com o discurso de ódio e com os atos de violência contra negros, mulheres, pobres, índios, pessoas LGBTQIA+ etc.
Os grupos de Whatsapp continuam ativos. As fake news estão distorcendo os fatos no momento em que você lê essas linhas. As contranarrativas já estão sendo produzidas e disseminadas para levar adiante esse delírio torpe, essa matrix ignóbil, esse mundo invertido a um só tempo ridículo e hediondo
Por trás dessas marionetes, e dessa maquinação, há gente poderosa que não tem qualquer escrúpulo em subverter as regras do jogo, e em estimular a violência, e em incensar golpes, e em bulir com a lucidez das pessoas mais suscetíveis, para preservar suas posições nos templos, nas lavouras, nos clubes grã-finos, nos gabinetes públicos e escritórios privados que abrigam os que mandam desde sempre no país.
Só há uma maneira de desmontar esse circo. A regra é antiga, mas vale mais do que nunca: follow the money. Desde quem paga o lanche e aluga os ônibus até quem financia e opera os robôs e algoritmos.
Adriano Silva, 51, é jornalista, fundador da The Factory e publisher do Projeto Draft, do Future Health e de Net Zero. É autor de dez livros, entre eles a série O Executivo Sincero, Treze Meses Dentro da TV, A República dos Editores e Por Conta Própria: do desemprego ao empreendedorismo – os bastidores da jornada que me salvou de morrer profissionalmente aos 40.
Ao longo da vida, vamos colecionando papéis sociais que “definem” quem somos – mas só na superfície. Quando foi a última vez que você se despiu dessas personas e se viu no espelho? Ou enxergou de verdade quem estava ao seu lado?
Intuição, sensibilidade e até a nossa insegurança são algumas das características que nos tornam melhores do que o ChatGPT. Saiba como tirar vantagem dos atributos humanos e usar a tecnologia a seu favor.