“Um mercado de cannabis legalizado enfraquece a criminalidade e gera receita para educação e saúde”

Leonardo Neiva - 26 set 2019
João Paulo Costa: o uso da cannabis contra epilepsia revolucionou sua saúde e transformou sua trajetória.
Leonardo Neiva - 26 set 2019
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Diagnosticado aos 16 anos com epilepsia, doença que causa perda de consciência e convulsões, João Paulo Costa viveu boa parte da adolescência e da idade adulta com uma série de restrições. Aos 26 anos, seu estado de saúde se tornou tão delicado que restringiu suas saídas de casa. Além disso, a exposição à luz do sol durante o sono ou ao despertar podia provocar convulsões.

Foi só em 2012, aos 28 anos, que ele topou com um produto que melhoraria drasticamente sua condição: a cannabis. “O tratamento com a cannabis mudou minha vida. Antes não podia fazer muitas coisas, como beber café, sair ou dormir com ninguém na cama, porque elas podiam causar convulsões. Hoje vivo normalmente e não tenho uma convulsão há anos.”

Além de uma solução inesperada para seu estado de saúde, João acabou encontrando aquele que seria o principal foco de sua carreira profissional. Em 2014, após passar por um processo de aceleração com sua primeira startup, que acabou falindo, ele teve a ideia de criar uma rede social que conectasse usuários de cannabis e apontasse os principais estabelecimentos que atuavam na área pelo mundo. Essa foi a gênese do Who is Happy, já baixado cerca de 400 mil vezes.

Ao aplicativo, hoje gratuito, seguiram-se o Ganja Talks, um festival multimídia que se propôs a debater as diversas facetas da cannabis em plena Vila Madalena, em São Paulo, e a Bilva Elemental, que atua no comércio de terpenos, compostos responsáveis pelo sabor e aroma da cannabis.

A seguir, João, que se define como um empreendedor serial, fala sobre sua formação, os primeiros contatos com a cannabis, o preconceito que enfrentou em sua trajetória e as oportunidades e dificuldades ligadas a esse mercado no Brasil e no mundo.

 

Como sua formação na publicidade e audiovisual te ajudaram a entrar no mercado da cannabis?
Eu acreditava muito em branded content. Quando comecei a faculdade, fui selecionado para trabalhar numa pequena agência que estava iniciando isso no Brasil. Foi aí que entendi como funciona o jogo do branding, criação de marca, como comunicar. E aprendi muito sobre projetos transmidiáticos.

Algum tempo depois, criei uma rede social chamada Pergunter, focada em perguntas e respostas através de imagens. Você tirava uma foto com o aplicativo e fazia uma pergunta. Por exemplo, quem é o arquiteto daquela casa? Aí a comunidade se reunia para achar a resposta.

Com isso, em 2014 apliquei para o Startupbootcamp, em Copenhagen, um processo de aceleração focado em startups de mobilidade. Eu já tinha contato com  startups, mas, chegando lá, percebi que não sabia nada. Os caras estavam muito na frente. Acabei falindo essa empresa. Quando fui morar em Londres, porque a captação de investimento acontecia lá, comecei a ter contato com o mercado da cannabis. Descobri que ia ser a próxima corrida verde, um dos mercados que mais viriam a ter receita e demanda.

Pensei: e se existisse um aplicativo que conectasse os consumidores de cannabis? Ali comecei a desenvolver o Who is Happy, ainda sem muitas funcionalidades. O lançamento foi um sucesso, com cobertura grande na mídia. O aplicativo foi um dos mais baixados da app store, um fluxo muito grande que a gente não esperava

Mais tarde, em 2017, fui convidado para participar do processo da Canopy Boulder, uma aceleradora focada em startups de cannabis, no Colorado, EUA. Lá tive contato com tudo o que estava acontecendo nesse universo. O Ganja Talks, Bilva Elemental vieram dessa minha relação com o mercado.

Em 2017, João Paulo participou da aceleração pela Canopy Boulder, aceleradora baseada no Colorado (EUA) com foco em startups do mercado canábico.

Como foi a aceleração da Canopy Boulder? O que você levou de conteúdo dali?
Foi muito bacana. Na Canopy, tive aulas com profissionais do mercado, sobre marketing, RH, tudo no ambiente de cannabis. São quatro meses de duração. Eram dez startups, cada uma trabalhando uma questão desse mercado. Hoje tem muita grana nessa área, então é até fácil conseguir investimento. O Who is Happy recebeu US$ 30 mil de captação.

A partir dali, eu entendi a dinâmica do mercado da cannabis, que é diferente dos outros. É tudo muito rápido. Toda hora está mudando legislação, política, forma de fazer negócios. Também é preciso ter um contato muito grande com investidores, e lá o networking é fantástico.

Foi a aceleradora que me possibilitou inclusive participar do Shark Tank [o episódio foi ao ar no início de julho deste ano, no canal Sony]. Quando o programa entrou em contato, eu já tinha a empresa pronta graças à ajuda deles. Naquela oportunidade não consegui que investissem no meu negócio, mas foi algo que abriu muitas portas para mim e para a empresa.

Como foi seu primeiro contato com a cannabis?
Quando jovem, eu era contra a cannabis porque vinha de uma família bastante conservadora. Na primeira vez que fumei, com 18 anos, eu curti, mas ainda achava aquilo meio errado. Foi só uma década depois que um amigo canadense me falou que cannabis era a melhor medicina para epilepsia. Quando comecei a consumir, percebi que era o tratamento perfeito para mim. Desde então, uso todos os dias.

Você enfrentou muito preconceito ao começar a empreender na área?
Sim, bastante. Ainda bem que desenvolvi o aplicativo em Londres. Quando ligava para minha família e amigos no Brasil, eles me perguntavam se eu estava louco, diziam que ia ser preso. Já em Londres, o pessoal me incentivava.

Com o tempo, essa visão acabou mudando dentro da minha família. Eles viram o quanto a cannabis fez diferença para minha saúde. Antes, minha vida era bem complicada. Depois que comecei a usar cannabis de forma medicinal, nunca mais tive uma crise de epilepsia. Como eles iam falar alguma coisa?

Onde você vive hoje?
Eu não fico mais no Brasil, minhas empresas estão todas lá fora. O Who Is Happy está em Delaware, o Ganja Talks e a Bilva Elemental em Vancouver. Nos últimos anos, tenho sido um nômade digital. Vivi em vários países da América Latina e Europa, mas é muito cansativo. Apesar de o meu time estar ao redor do mundo, eu preciso ter alguma rotina. Agora estou me preparando para ficar  de vez em Vancouver, onde vive a minha família.

No Brasil, a gente tem uma noção da cannabis muito ligada ao crime, à violência. Em outros lugares é totalmente diferente. Teria sido difícil começar no Brasil, porque todo mundo, de família a amigos, falou para eu deixar a ideia de lado. Eu acreditei porque estava estudando esse mercado lá fora.

O perfil de João Paulo na tela do Who Is Happy: o aplicativo já foi baixado cerca de 400 mil vezes.

A legalização da cannabis no Canadá completa um ano em outubro. Como essa mudança tem impactado a sociedade canadense?
Um ou dois anos antes de o governo canadense assinar a legalização, apareceram dispensários ilegais por todo lado. Os caras faziam US$ 100 mil por semana. Na província da British Columbia, que é onde eu conheço, o consumo é grande, são 20% das pessoas que usam cannabis ao menos uma vez por mês.

A regulamentação no Canadá para mim é uma das melhores do mundo. Eles estão se profissionalizando, regulamentando as coisas aos poucos no país todo. É bem diferente dos EUA, onde isso acontece de forma estadual, com dificuldade para mover dinheiro e conseguir investimentos.

No Canadá, o que era uma bagunça está se organizando muito rápido. Quem agia ilegalmente foi multado, e as lojas já estão arrumadas. Muitas pessoas até param de consumir álcool para usar cannabis.

É possível empreender com a cannabis no Brasil hoje, mesmo com a venda e consumo sendo ilegais no país?
É possível sim gerar receita de forma legal. Hoje se trabalha com o mercado auxiliar, com produtos como seda, piteiras, dichavadores. O que dificulta a operação é a questão da comunicação e do incentivo ao consumo.

O principal contato com o consumidor ainda é feito pelas redes sociais, só que as políticas dessas redes não possibilitam a comunicação de cannabis. Mas os empreendedores estão encontrando outras formas, você vê um grande número de startups trabalhando nisso.

Quais as tendências para o mercado da cannabis no mundo hoje?
Uma questão importante é o mercado do canabidiol (CBD), que vai além da parte medicinal. Você tem o tratamento de doenças como a epilepsia, por exemplo, mas também para o uso na saúde de animais de estimação, um mercado que está bombando. E há várias outras áreas que usam CBD para o desenvolvimento de produtos, como cosméticos e produtos de beleza.

Qual o balanço financeiro do Who is Happy até o momento, já que seu uso ainda não é monetizado?
O investimento inicial veio de dinheiro de família, um total entre R$ 500 mil e R$ 1 milhão. Além dos US$ 30 mil da Canopy Boulder, agora estamos conversando com outros investidores para termos um aporte maior.

Venho investindo há muito tempo nesse projeto sem um retorno, sem um formato comercial estabelecido para a plataforma. O foco, como em outras redes sociais, foi a aquisição de usuários para depois trabalhar o formato comercial. Até agora, tivemos em torno de 400 mil downloads do aplicativo

A ideia é começar a vender cannabis por delivery na plataforma a partir do ano que vem, inicialmente no Canadá. No momento, estou no processo de investir e negociar com as empresas de lá para que isso aconteça.

Conte um pouco sobre como surgiu o Ganja Talks.
Ele surgiu em 2016 como um festival sobre cannabis, que aconteceu duas vezes e foi um grande sucesso, movimentando cerca de três mil pessoas. Você andava entre diversos lugares na Vila Madalena, com atrações como realidade virtual, palestras, exposição de produtos. Era um evento que parava o bairro, todo mundo fumando, legalize total.

Infelizmente não pudemos continuar, porque o evento não gerava grana. Criava muito networking e oportunidades, mas eu perdia dinheiro. Hoje a gente está reestruturando o Ganja Talks, com um processo mais focado no mercado, em compartilhar informações.

A Ganja Talks University faz parte desse novo processo de compartilhamento de informações?
Sim, foi a maneira que encontrei para gerar receita, oferecendo cursos relacionados à cannabis. Ainda é difícil encontrar conteúdo sobre cannabis, existem poucas fontes, poucos estudos sobre ela.

Pela internet, a gente oferece cursos em português e inglês de empreendedorismo, cultivo orgânico, e extração da planta. Além disso, também estamos desenvolvendo um curso de culinária com cannabis. Hoje temos em torno de 500 alunos dentro e fora do Brasil, com valores próximos de R$ 1 mil por curso.

São videoaulas com material suplementar, PDFs, entrevistas. Tentamos criar uma relação próxima com nossos alunos porque uma das principais questões para eles é ter esse contato e fazer parte da comunidade. O Ganja Talks vem para suprir essa necessidade.

E como nasceu a Bilva Elemental?
Eu estava na Canopy Boulder quando ouvi falar sobre terpeno, um composto responsável pelo aroma e sabor da cannabis. Percebi que, se eu conseguisse extrair só o terpeno, poderia vender no Brasil, porque ele não tem substâncias ilegais.

Hoje a gente vende para pessoas que querem ter uma qualidade melhor de cannabis, com o aroma de uma cannabis da Califórnia. Inclusive uma das questões para resolver no Canadá é nossa falta de estoque desses produtos.

Estou em contato com uma empresa no Brasil e outra no Canadá para facilitar a importação de grandes quantidades. Até agora, a Bilva gerou em torno de R$ 100 mil de faturamento.

O que você diria para convencer um político brasileiro sobre os benefícios da cannabis?
A questão principal é que esse mercado já opera, e a grana passa pela mão de pessoas que lidam com o crime. Um mercado de cannabis legalizado enfraquece a criminalidade e gera receita para áreas como educação e saúde, por meio de taxas e impostos.

O governo hoje gasta muito no combate à cannabis e não gera nenhum retorno para a sociedade. No Colorado, você vê o que é investido em educação, algo que poderia mudar a realidade brasileira. Esse para mim é o ponto principal

Como você gostaria de ser lembrado? Qual legado pretende deixar?
Pessoalmente, gostaria de ser lembrado como um desbravador, que passou por muita dificuldade para chegar aonde cheguei. Como legado, gostaria de dar foco à questão medicinal da cannabis.

Se puder ajudar outras pessoas com epilepsia, será muito mais do que realização pessoal. Você vê a realidade de pessoas que não podem nem sair de casa por causa de convulsões. Um baseado resolveria a vida delas.

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