Desde a inauguração, em julho deste ano, o sebo Casa 11 tem chamado a atenção da cena cultural carioca.
Em pouco tempo de existência, o pequeno — mas bem decorado, iluminado e refrigerado — espaço na movimentada Rua das Laranjeiras, bairro na zona sul da capital fluminense, vem se consolidando como ponto de encontro para os amantes não só de literatura, mas de tudo que ela envolve. E como um exemplo de que propósito pode ser o suficiente para unir 117 pessoas em uma sociedade sem o objetivo de trazer lucro financeiro.
“Acho que as pessoas estão aqui por acreditar em alguma coisa”, diz Beatriz Serra, uma das sócias do projeto. “De alguma maneira, você está contribuindo com uma sociedade mais justa. Claro que tem uma questão de amor, mas acho que, na verdade, as pessoas aqui estão se posicionando pela formação de uma sociedade mais crítica, mais ética.”
A ideia partiu da médica Ana Mallet, que durante 18 anos administrou a Largo das Letras, livraria em Santa Teresa, bairro na região central do Rio de Janeiro. Ela conta:
“Vinte anos atrás, fiz um curso que dizia que precisava de 70 mil reais para abrir uma livraria. Eu não tinha essa grana, então juntei 22 pessoas e abrimos o negócio”
Das 22 pessoas, 16 seguiram na livraria que deu lucro somente uma vez — algo em torno de 50 reais para cada um, que acabaram usados para comprar livros da própria livraria, segundo Ana: “Depois de 18 anos, a animação muda, então em julho do ano passado decidimos que estava bom – e fechamos.”
Entretanto, aquele adeus acabaria se revelando apenas um breve intervalo em sua trajetória de livreira – e não o seu ponto final.
Em maio deste ano, passeando pela galeria onde hoje fica o Casa 11, Ana viu uma sala vazia.
O baixo valor do aluguel — com as contas, fica em torno de 2 500 reais — e a localização privilegiada, num ponto movimentado, despertaram em Ana a vontade de voltar a vender livros.
“Quis fazer isso sem pensar que vai ser um grande negócio, que fosse algo para satisfação pessoal, para contribuir com alguma coisa”
Mais uma vez, juntou um grupo de amigos, em que cada um pagaria 100 reais para abrir o sebo.
Foi um sucesso: o grupo, que começou com cerca de 50 amigos de longa data, de lá para cá se expandiu e tem hoje 117 pessoas em 78 cotas da sociedade.
É composto, em sua maioria, por profissionais da área da saúde, que no início adotaram o slogan “Mais livros, menos farmácias”, inspirados em cartazes que estavam colados na fachada da sala ainda vazia. Ana afirma:
“A ficção é a coisa que mais pode nos aproximar de outra pessoa. Tem muita gente que trabalha com literatura e medicina, para estimular uma sensibilidade na medicina que não deveria ser perdida. Quando estamos diante de um paciente, é como se ele fosse um livro, tem toda uma história por trás daquela pessoa ali”
Médica e livreira, ela elabora a metáfora com conhecimento de causa:
“Quando a gente lê um livro de medicina, a doença parece sempre ‘a mesma coisa’… Mas cada doente com a mesma hepatite é diferente. Cada história de adoecimento é diferente.”
Porém, este não é um sebo voltado para a área da saúde. Muito pelo contrário: livros “técnicos demais” nem entram nas estantes.
O acervo (que não é catalogado nem contabilizado) tem de tudo um pouco, e foi construído na base de doações recebidas e compras de exemplares novos específicos — todo dinheiro recebido com as vendas é guardado e parte dele é investido na aquisição de livros.
“A gente não faz consignado [com editoras], a gente compra”, afirma Beatriz. “Agora mesmo fizemos uma. Veio uma pesquisadora falar sobre literatura indígena, e eu senti que estávamos em falta de mais escritores indígenas, então compramos 2 mil reais em autores indígenas.”
Os preços, identificados por etiquetas coloridas, variam de dez a 60 reais, mas “ninguém vai ficar sem o livro que queira muito”, avisa o catálogo com a identificação da precificação. Na visão de Beatriz, o Casa 11 é parte da economia circular.
“Acho que estamos colaborando para menos papel, menos árvores, essa coisa toda. Tem gente que vem doar livros porque não tem mais espaço físico, porque morreu alguém. Por exemplo, veio uma moça aqui agora que vem sempre doar, mas ela sempre compra outros e sai com uma pilha de livros. E temos essa coisa de oferecer o livro mais barato, porque o livro está muito caro, né?”
Mesmo sem catalogar ou contabilizar, o grupo tem algumas regras para o que entra no acervo: além dos livros muito técnicos, os didáticos ficam fora das estantes. O que não passa por esse filtro da Casa 11 é doado para a biblioteca comunitária da Ilha de Paquetá (na Baía de Guanabara) e para vendedores de rua — uma das livreiras que eles apoiam, dona Alva, vende livros há 32 anos.
Além dos livros, o Casa 11 organiza eventos quase diários que vão de lançamentos de livros a conversas com autores e pesquisadores. No dia em que o Draft esteve no local, por exemplo, quem palestrava era Adriano Rouba Cena, ex-presidiário criado na favela do Jacarezinho que hoje é dramaturgo da ONG Kriadaki.
“O livro tem essa potência de dialogar com várias áreas”, diz Beatriz. “Vai para o cinema, para o teatro, vai para a música. Tem sempre um leitor atrás, um texto escrito, seja numa plataforma digital ou impressa.”
Da compra de livros à organização de eventos, tudo é resolvido em dois grupos de WhatsApp, um para conversas mais gerais e outro para decisões do dia a dia.
“Ninguém é obrigado a fazer nada, cada um faz o que quer, na hora que quer e como puder”, explica Ana, que conta que quando convidou pessoas para participarem do projeto foi franca: ninguém vai ter lucro.
Ela também sugeriu a cota de 100 reais por mês por pelo menos um ano. “Mas se quiser sair, pode sair, não tem nada escrito, é um compromisso individual”, ressalta.
Mesmo com tanta gente envolvida, a operação parece funcionar. Ana, que se considera uma grande “descentralizadora”, afirma:
“Tem essa coisa alegre de juntar gente e fazer algo junto. Passamos muitos anos sem essa perspectiva de coletividade, esse é o nosso pequeno coletivo que se protege”
Beatriz completa: “Às vezes alguém sugere algo e alguém discorda. Tem divergências, mas tem uma coisa em comum que une todo mundo, então não chega a ser um problema, alguém abre mão.”
Sem funcionários, o dia a dia do sebo é organizado por uma escala semanal. “As pessoas vão colocando [o nome no horário em que podem contribuir] e se um dia não puder ninguém… Paciência, fecha”, diz Ana.
A sustentabilidade financeira do negócio definitivamente não é a principal prioridade aqui. O que importa é o bem-estar de quem visita e de quem faz a Casa 11:
“Este é um espaço em que as pessoas vêm e se sentem bem. Está todo mundo precisando um pouco disso, de ter esses espaços coletivos, de fazer uma coisa que não seja para ganhar dinheiro. Claro que somos um grupo privilegiado, a maioria mais velha, que não precisa disso para viver.”
O sucesso inesperado e em tão pouco tempo, porém, já traz alguns desafios.
O primeiro é burocrático: atualmente, o Casa 11 opera como Microempreendedor Individual (MEI); se o movimento dos três primeiros meses se mantiver, precisarão se estruturar como empresa. Ana afirma:
“A gente nunca pensou que ia ter esse problema, porque no geral está muito difícil, só vemos livrarias fechando… E fizemos isso sem pensar que seria um grande negócio, é algo para satisfação pessoal, para contribuir com alguma coisa”
O segundo desafio é físico: o espaço ficou pequeno para comportar tantos visitantes. “Se tivesse outra loja nessa galeria, a gente alugaria, mas não pensamos em sair daqui”, afirma.
Isso não impede a turma de bolar mais projetos. Para este último sábado, 11 de novembro, estava agendada a primeira edição de um evento batizado internamente de “Casa Voadora”: uma biblioteca itinerante na rua. Existe também a ideia de organizar um cineclube com sessões mensais.
Com a experiência de quem geriu um negócio parecido por quase duas décadas, Ana tenta conter a empolgação (a sua e a dos sócios) e diz que ainda é cedo para tomar grandes decisões, como a de se mudar para um novo endereço. Mas não esconde sua visão para o futuro do Casa 11. “A ideia é se consolidar como um espaço cultural.”
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