Uma notificação judicial devido a uma disputa por herança fez Toni Carlos e a família deixarem para trás o terreno onde viviam no Bairro do Limão, na Zona Norte de São Paulo. Era meados dos anos 1990, e Toni tinha 15 anos. Contrariado, se mudou com os parentes para Carapicuíba, na região metropolitana da capital, mas jurou que um dia voltaria para morar exatamente no mesmo lugar.
Para dar vazão a seus sentimentos, começou a escrever. Na escola, fazia fanzines e jornais; em casa, escrevia cartas para manter o contato com os amigos do Limão, numa época em que as pessoas não dispunham de celular e muito menos WhatsApp. “Foi a primeira relação que tive com a força da palavra”, diz.
A percepção sobre a “força da palavra” está na raiz de sua história de empreendedorismo. Toni Carlos, 40, é o fundador da LiteraRUA, editora e livraria voltada a publicar livros que enfocam questões da periferia e das minorias, como as temáticas negra e feminista. Em oito anos, foram 20 obras publicadas, que juntas venderam mais de 50 mil cópias.
O estalo que levou à criação da editora surgiu em algum momento anterior, ali no meio dos anos 2000, quando ele conheceu o Sarau da Cooperifa (movimento cultural ativo há 19 anos na Zona Sul de São Paulo). Sentiu ter encontrado a sua turma:
“Nunca imaginei ver pessoas que trabalharam o dia inteiro tirar um pedaço amarrotado de papel do bolso e ler uma poesia que elas escreveram. Foi quando percebi que eu não era o único que fazia isso e passei a me reconhecer como um desses autores que se autopublicam”
A LiteraRUA saiu do papel em 2011, com a publicação de dois livros: Poucas Palavras, com letras do rapper Renan Inquérito; e Um Sonho de Periferia, com textos escritos por crianças atendidas pela ORPAS (Obras Recreativas, Profissionais, Artísticas e Sociais), durante oficinas ministradas por Toni. No ano seguinte, ele publicou seu próprio romance, O Hip Hop está morto, uma narrativa “quase autobiográfica” que se pretende uma porta de entrada para quem quer conhecer a história do movimento.
Embora ele seja o único sócio da empresa, a operação é tocada em parceria com o amigo Demetrios Santos, 42, que desde o começo o ajuda no desenvolvimento dos projetos, e de Luciana Macedo, 37, a única funcionária de fato, responsável pela parte administrativa do negócio.
VENDER LIVROS DE OUTRAS EDITORAS AJUDOU A SUSTENTAR O NEGÓCIO
Formado em Publicidade pela Escola Técnica Oswaldo Cruz, Toni foi trabalhar em 2002 no portal Vermelho. Criou uma seção sobre cultura hip hop, cujos artigos publicados seriam reproduzidos num livro da LiteraRua, Hip Hop a Lápis (que chegou a ser adotado por alguns colégios do Brasil em um projeto-piloto do governo federal para atender à lei que torna obrigatório o ensino sobre história e cultura afro brasileira nas escolas).
“Hip Hop a Lápis” foi o nome que ele deu, em 2006, ao seu ponto de cultura, parte de uma política pública em que entidades e coletivos recebem verba para desenvolver ações culturais em suas comunidades. Em 2010, seu trabalho no desenvolvimento de projetos lhe rendeu um prêmio de R$ 20 mil do Ministério da Cultura, com o qual começou a estruturar a LiteraRUA.
“Foi aí que começamos a adotar uma cabeça de negócio”, diz. Até então, ele desenvolvia alguns projetos, inclusive literários, a partir de editais públicos. Mas viu que esse não era o melhor caminho para fazer as obras chegarem às pessoas.
“Não adianta dar um livro para quem não gosta de ler. Distribuir livros funciona como política educacional, mas, dentro do nosso conceito de querer transformar pela literatura, percebemos que distribuir livros cria problemas”
Os principais entraves, explica, eram os critérios de distribuição impostos pelos editais (e nem sempre fáceis de definir), e a falta de sustentabilidade financeira, já que não havia dinheiro para fazer uma nova tiragem dos livros quando estes esgotavam.
Vendo o pai, que nunca vendeu os quadros que pintou, ele entendeu a importância da parte comercial para quem produz arte: “Sem o comércio não é possível fechar o elo. E aí o artista não consegue se comunicar com o mundo”.
Com essa ideia em mente, Toni criou a livraria virtual junto com a editora. É um canal para vender a produção da LiteraRUA e comercializar também outras publicações com temáticas alinhada à sua espinha dorsal: a periferia, suas lutas e questionamentos. “Isso começou a gerar referência porque, na época, estas obras não entravam nas livrarias.”
COMO A LITERARUA CONSEGUIU FURAR O CERCO DAS GRANDES LIVRARIAS
Quando lança um livro, a LiteraRUA organiza uma turnê com o autor por bibliotecas, escolas e centros culturais em regiões da periferia de São Paulo, e também por grandes livrarias, inclusive as mais elitizadas. No início, não foi fácil acessar as cadeias varejistas. “Existia uma soberba. O mercado estava pujante, então dava para desprezar esse nicho”, diz. O nicho desprezado, claro, era a literatura produzida nas bordas da cidade.
A relação mudou a partir de um livro dele mesmo, Toni: Sabotage – Um Bom Lugar, de 2013, biografia do rapper assassinado uma década antes, aos 29. Sabotage era um artista conhecido por ter encontrado no rap uma saída para escapar da vida do crime. No ano de sua morte, despontaria nas telas em uma participação no filme Carandiru, de Hector Babenco (inspirado em livro de Drauzio Varella), que foi visto por mais de 4,6 milhões de pessoas no cinema.
Toni acompanhava o trabalho de Sabotage. Em janeiro de 2003, estava acampado em Porto Alegre para o Forum Social Mundial, e pretendia encontrar o rapper, que participaria do evento — mas foi morto antes de embarcar para a capital gaúcha. Toni conta que foi ele próprio quem soube da notícia e a dividiu com o resto do grupo no acampamento.
O escritor coletou material para o livro durante uma década, mas a pesquisa intensiva e as entrevistas com a família de Sabotage começaram em 2011. A biografia é até hoje a obra mais vendida da LiteraRUA, com 10 mil exemplares.
“Cem por cento do mercado comercial veio com a gente, a partir do Sabotage”, diz Toni. A relação da LiteraRUA com as grandes livrarias se mantém desde então e, na avaliação do empreendedor, foi até aprimorada com a crise do mercado editorial, que segundo ele precisou se render a títulos mais populares, de autoras e autores negros inclusive.
“A oferta tem sido afetada com o fechamento de lojas e a migração da venda para o online. Como leitor e cidadão, não posso achar bom que uma livraria feche. Do ponto de vista do negócio, é um concorrente que vai embora. Porém, no médio prazo, isso tem o efeito de desestimular a leitura”
O fato é que, na contramão da crise, a LiteraRUA vem crescendo. Em 2018, o negócio faturou 212 mil reais. Ao comparar as vendas do primeiro semestre daquele ano com o primeiro semestre de 2019, Toni diz que o aumento foi de 300%.
NOS PROJETOS, AUTORES E EDITORA DIVIDEM CUSTOS E RECEITA
Uma das preocupações da LiteraRUA é em como estabelecer uma relação de cooperação com os autores. Toni diz que a editora funciona como um coletivo e as obras são pensadas em conjunto, da capa à comercialização. Enquanto a praxe no mercado editorial é que os autores fiquem com 10% do valor da venda dos livros, na LiteraRUA a operação se dá de forma diferente, já que os custos e a receita são partilhados entre o autor e a editora.
As frações dessa divisão dependem caso a caso. “Cada autor é um parceiro nosso. Isso é importante porque o autor é, em grande medida, responsável por fazer o livro circular. Ele é o maior vendedor de livros que existe”, diz. Como estratégia de mercado, essa política de remuneração dificulta a escala dos projetos, mas o empreendedor está seguro desse caminho, mesmo que implique em obstáculos financeiros.
“Se eu fizesse diferente, talvez conseguisse publicar um livro por mês. Mas não quero ser predatório. Acredito que a arte tem, sobretudo, uma função social. Se tiver apenas o viés econômico, pode até ser um produto comercial, mas não é verdadeiramente arte”
As tiragens começam em mil exemplares (e, após a primeira, são geradas conforme a demanda). Os livros da LiteraRUA custam entre R$ 19,90 a R$ 97,90, com um ticket médio R$ 50. Em 2018, foram três títulos novos. Essa média deve se manter em 2019: um livro já foi publicado este ano e mais dois estão previstos.
Um desses próximos lançamentos é Lukênya, obra voltada ao público infantil sobre uma garota negra que vai descobrindo o próprio cabelo. O livro será publicado em português e kimbundu, língua bantu falada em Angola. A autora, Odara Dèlé, é professora de Sociologia do ensino médio, na rede estadual, e empreendedora à frente do Alfabantu, um aplicativo para o ensino do idioma.
Toni entrou em contato com Odara enquanto participavam do Vai Tec, aceleração para empreendedores de baixa renda promovida pela ADE SAMPA. Com uma bolsa de 32 mil reais, o programa de seis meses deu fôlego à LiteraRUA em 2018.
Neste ano, a editora foi selecionada para outra iniciativa, desta vez da Aceleradora de Negócios de Impacto da Periferia (ANIP), que oferece mentorias e um aporte de 20 mil reais — o uso do dinheiro será definido em conjunto no fim da aceleração (de sete meses), em novembro.
O foco agora é trabalhar com mais autores, lançar cada vez mais títulos e vender também mais obras de outras editoras. O objetivo deve ser atingido, se depender apenas da determinação do empreendedor. Em 2010, uma década e meia após deixar à revelia a casa onde morava no Limão, Toni cumpriu a promessa de retornar ao bairro. A casa não existia mais, mas ele fez questão de comprar um apartamento no condomínio construído no terreno. “Eu falo que foi uma vingança positiva.”
Desconstruir mitos e fórmulas prontas, falando a língua de quem vive na periferia: a Escola de desNegócio aposta nessa pegada para alavancar pequenos empreendedores de São Miguel Paulista, na zona leste de São Paulo.
O chef Edson Leite e a educadora Adélia Rodrigues tocam o Da Quebrada, um restaurante-escola na Vila Madalena que serve receitas veganas com orgânicos de pequenos produtores e capacita mulheres da periferia para trabalhar na gastronomia.
“Nerd da favela”, João Souza sempre fugiu dos estereótipos. Hoje ele lidera a ONG FA.VELA, com foco em educação digital e empreendedorismo nas periferias, e a Futuros Inclusivos, agência de consultoria que atende empresas e governos.