Quem vê o Brasil potência agrícola, com safra recorde em 2014/15 a despeito da maior seca em cem anos, talvez não imagine que foi – literalmente – muito chão para chegar até aqui. Neste caminho vale lembrar uma revolução à brasileira que inovou nosso jeito de plantar e colher: o plantio direto (PD).
Uma história de 40 anos, ainda em curso, em que personagens como agricultores, profissionais de equipamentos e tecnologias, agrônomos e pesquisadores aprenderam como explorar nossas terras e clima tropicais, em favor da agricultura e em maior sintonia com a natureza, de forma mais sustentável.
Plantar no Brasil está longe de ser tarefa fácil. Uma piada comum entre agrônomos e produtores diz que a mentira mais velha do país é “aqui, em se plantando, tudo dá”, a famosa adaptação torta da carta de Pero Vaz de Caminha. Na verdade, nossos solos são alvo certeiro da erosão pelas chuvas intensas, e estiagens estragam colheitas a torto e a direito.
O plantio direto apareceu com força no Brasil nos anos 1970, como uma alternativa ao preparo convencional do solo. O legado de décadas de mecanização pesada no campo mostrou efeitos colaterais e a erosão detonava uma média anual de 20 toneladas de solo por hectare no Brasil. Para não citar outros danos como compactação e empobrecimento da terra.
A partir de experimentos que apareciam nos EUA e na Inglaterra, produtores brasileiros pioneiros começaram a parar de arar e remexer a terra, conservando plantas em desenvolvimento e raízes o ano todo sobre o solo – daí a técnica ser conhecida também como plantio direto na palha, que são os resíduos mortos dos vegetais.
O plantio direto funciona assim: faz-se apenas pequenos sulcos na terra para o plantio das sementes. Após a colheita, os restos da cultura são roçados e ficam no solo. Planta-se na entressafra uma cultura para produção de matéria orgânica, que também fica no solo. No ano seguinte a semente já encontra a terra coberta de palha, e assim o solo se enriquece, com menor infiltração de água e mais matéria viva, gerando uma agricultura mais orgânica.
COMO OS DEFENSIVOS FORAM FUNDAMENTAIS AO PLANTIO DIRETO
O primeiro a citar a possibilidade de deixar de mexer no solo foi o inglês Edward Faulkner, em 1943, no clássico “Plowman’s Folly”. Ele apostava no plantio sem preparo mecânico da terra, só no cultivo mínimo. Estudos na mesma década na Inglaterra confirmaram que isso era possível desde que houvesse controle das ervas daninhas, os diversos tipos de mato que afetam as plantações. O avanço da indústria agroquímica nas décadas de 1950 e 1960 veio e trouxe as moléculas que abririam caminho para o plantio direto moderno.
Uma dessas moléculas pioneiras é o glifosato, sintetizado pela Monsanto no começo dos anos 1970. “O plantio direto é uma técnica conservacionista revolucionária, e só foi possível por herbicidas como o glifosato”, diz o agrônomo Pedro Christofoletti, chefe do departamento de Produção Vegetal da Esalq (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz), da USP.
“O começo de tudo foi o controle das plantas daninhas”, opina Pedro Freitas, pesquisador da Embrapa Solos, no Rio. O sistema de PD reduziu as perdas de solo em até 95%, permitindo o acúmulo de matéria orgânica, o que elevou a produtividade a médio e longo prazo.
Essa técnica, associada a outras práticas conservacionistas, como a rotação de lavouras e formação permanente de palha, consolidou uma nova filosofia, uma nova forma de pensar a agricultura. Mudança essa motivada, claro, pela necessidade dos produtores de aumentar a produtividade, mas também por uma agenda ambiental que começava a se impor com urgência no Brasil e no mundo.
Com a rotação de culturas era possível ter menos pragas e doenças nas lavouras. Daí a reduzir o uso de defensivos e os custos de produção, e um ciclo virtuoso se abria.
Hoje 60% de todas as lavouras de grãos no país são cultivadas em plantio direto, o que corresponde a 32 milhões de hectares — o equivalente aos Estados de São Paulo, Rio e Alagoas juntos. E prováveis bilhões de reais em benefícios diretos e indiretos. Sim, bilhões de reais por ano. Essa conta foi feita em 2007 por pesquisadores da Embrapa, considerando a área de PD no país à época (22,5 milhões de hectares).
Seis bilhões em vantagens internas à propriedade, como economia de energia com irrigação e uso eficiente de fertilizantes e defensivos, outros R$ 434 milhões em benefícios externos, como manutenção de estradas vicinais pela falta de erosão, e outras vantagens quantificáveis como sequestro de carbono e recarga de aquíferos. A soma final ficou em R$ 6,7 bilhões, só naquele ano.
O TRAMPO MONSTRO DOS DESBRAVADORES
Hoje que o sistema deu certo pode ser fácil estimar os benefícios, mas os pioneiros do PD penaram lá atrás. Em certo sentido era como voltar 6.000 anos na história da agricultura, antes do arado de madeira dos egípcios. Até então o homem plantava de forma semelhante à natureza – cavava pequenos buracos e jogava as sementes. Adotar o PD era, portanto, negar toda a “evolução” dos séculos de arados, grades e subsoladores, assumindo custos e riscos de um sistema que nunca havia sido testado em grande escala no país.
Que o diga o produtor Herbert Bartz, 78 anos, de Rolândia, norte do Paraná. Bartz é a referência mais antiga no país de quem iniciou e deu continuidade ao plantio direto até hoje. Cansado de ver a chuva arrastar sua terra e suas sementes recém-plantadas, Bartz foi aos EUA e Inglaterra conhecer as experiências de PD.
Encomendou uma semeadora própria para esse sistema, que chegou ao Brasil em outubro de 1972. Ele conta que foi visto por vizinhos como louco ao plantar soja sobre a palha do trigo, e que havia também resistência entre técnicos.
“No começo, pelo simples fato de que era uma técnica que vinha dos agricultores, de baixo para cima, havia uma resistência generalizada dos profissionais da área, uma barreira ideológica que depois caiu”, conta o catarinense Bartz, ainda com o forte sotaque da infância na Alemanha.
O PD não é uma receita universal e pronta de manejo, e até hoje precisa ser adaptado a diferentes ambientes. Na década de 1980, por exemplo, foi essencial a ação conjunta de produtores, empresas, academia e governo nos ensaios de adaptação do PD rumo à fronteira agrícola do Centro-Oeste. Um trabalho da Embrapa sobre a história do PD no país lembra a atuação de empresas como a Monsanto nesse período:
“Empresas como a Monsanto também tiveram participação importante em todas as iniciativas nos cerrados brasileiros, apoiando os trabalhos em realização, disseminando tecnologias adaptadas e promovendo ensaios de culturas, treinamentos e eventos, ao lado da Semeato, Manah, SLC, entre várias outras”, diz o texto disponível na rede da Embrapa.
OS DESAFIOS DO FUTURO
Claro que o jogo não está ganho. Ao longo da última década, áreas de PD têm registrado erosão por água e perda de produtividade, problemas mais comuns ao plantio tradicional.
O pioneiro Bartz lembra que inovar tem seus custos – há quem não consiga alternar culturas (plantando capim, por exemplo) e fazer palha enquanto pode faturar com a lavoura tradicional. Para Herbert, ainda falta uma boa política de crédito que favoreça o agricultor que insiste com o PD e na inovação no campo. “Essa parte é pesada para o agricultor sozinho”, diz.
Atenta aos desafios à frente, a Embrapa Solos, no Rio, articulou uma rede de 60 pesquisadores e mais de 20 instituições no projeto SoloVivo, que acompanhará por quatro anos 12 pequenas bacias hidrográficas em cinco Estados (GO, MS, RS, PR e SP) —seis com bom manejo e seis com trato inadequado da terra. O objetivo do projeto, iniciado em 2014, é construir ferramentas e índices para avaliar o manejo de solo e água em bacias e pequenas propriedades. A partir daí, recomendar arranjos de produção que consolidem o sistema de PD nessas áreas.
Parece ser um bom exemplo de como renovar e tocar para frente essa história bem-sucedida de inovação na agricultura nacional, que firmou âncora na cooperação tecnológica e na troca de experiências entre produtores e todos os elos da cadeia da produção agrícola no Brasil.