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“Falam que sem a nossa luta não haverá um futuro, mas a gente já é o futuro. Estamos lutando aqui e agora por uma nova geração”

Juliana Afonso - 24 abr 2023
A ativista Val Munduruku (crédito: Jaciara Borari).
Juliana Afonso - 24 abr 2023
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Nos últimos anos, a exploração descontrolada dos recursos naturais e os impactos cada vez mais intensos da crise climática têm transformado a luta pela conservação dos territórios indígenas em uma verdadeira corrida contra o tempo. 

Preocupada com esse cenário, Valdineia Saure, 26, mais conhecida como Val Munduruku, tornou-se uma das lideranças do seu povo e da sua geração.

Val nasceu em Jacareacanga, cidade banhada pelas águas azuis-esverdeadas do Rio Tapajós, que começa em Mato Grosso e percorre 840 quilômetros dentro do estado do Pará até desaguar no rio Amazonas. 

Apesar de habitar o curso do Rio Tapajós há centenas de anos, o povo Munduruku não tem segurança sobre a posse da terra: existem apenas dois territórios demarcados oficialmente e grande parte das aldeias Munduruku distribuídas na região estão fora desses espaços (ao todo, existem pelo menos 140 aldeias Munduruku, segundo uma carta divulgada em 2021 contra a mineração em terras indígenas).

Ainda criança, Val acompanhava as mobilizações do seu povo, sem entender muito bem o motivo dos conflitos. Sua atuação como ativista começa em 2014, ao mudar de cidade para ingressar no ensino superior. 

“A entrada na universidade ampliou minha visão de mundo e meu entendimento sobre o que estava acontecendo dentro do nosso território”

Val entrou no movimento estudantil e, em seguida, passou a integrar a Associação de Mulheres Indígenas Suraras do Tapajós (da qual é a atual presidente) e o Engajamundo, organização de jovens que trabalha questões ambientais. Sua postura atuante foi destaque nas últimas três Conferências das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP), na Espanha, Escócia e Egito, respectivamente.

Val também rompeu fronteiras dentro da aldeia ao ser a primeira mulher do seu povo a assumir sua homossexualidade. 

“Eu sou referência e recebo feedbacks muito bonitos de meninas e mães que me buscam para conversar”, conta. Hoje, ela vive em Alter do Chão, em Santarém, município do Pará, com a esposa Jaciara Borari, que também é ativista indígena.

Atualmente, Val tem trabalhado na divulgação da série documental O Som do Rio, produzida pela Maria Farinha Filmes para o YouTube. A produção traz a ativista e a cantora Maria Gadú em uma viagem pelo Rio Tapajós. 

A série foi escolhida pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT) para integrar o primeiro International Film Festival. Para Val, as novas tecnologias têm servido como ferramenta de luta. “São coisas que a gente vê como inovação e que o não indígena vê como ‘aculturação’.” 

Leia a seguir a entrevista de Val Munduruku para o Draft:

 

Você nasceu no município de Jacareacanga e tinha pouco contato com a aldeia Munduruku. Quando sentiu que precisava estreitar sua presença e atuar ativamente pela preservação do território?
Minha relação com os meus parentes que moram nas aldeias indígenas acontecia quando eu ia nas férias ou quando eles vinham até a casa da minha mãe. Eu conhecia pouco da cultura e não entendia muito bem os conflitos que meu povo vivenciava.

Em 2014, passei no processo seletivo especial da Universidade Federal do Oeste do Pará, que destina vagas no ensino superior para estudantes indígenas. Foi quando me mudei para Santarém para cursar Gestão Público e Desenvolvimento Regional. A entrada na universidade ampliou minha visão de mundo e meu entendimento sobre o que estava acontecendo dentro do nosso território.

Eu já sabia que havia uma grande mobilização para defender os nossos direitos básicos, porque as políticas públicas não chegavam e, quando chegavam, não respeitavam nosso modo de vida; mas até então eu achava que aquilo não era para mim. 

Só depois fui ter o entendimento que eu estava me formando para isso – para defender e colocar as problemáticas do meu povo em evidência

Fui me engajando em outros espaços. Hoje sou presidente da Associação de Mulheres Indígenas Suraras do Tapajós, que busca empoderar as mulheres indígenas e combater o racismo e a violência, e integrante do Engajamundo, que atua em pautas ambientais, climáticas e sociais.

Quais são as maiores ameaças que os povos indígenas da região do Alto Tapajós estão sofrendo atualmente? Como vocês têm se organizado para lutar contra elas?
A principal ameaça era a instalação de hidrelétricas do Complexo Hidrelétrico do Tapajós. Elas inundariam algumas regiões e outras secariam totalmente. 

Muitas comunidades seriam afetadas e precisariam se deslocar do território, que pra gente não é só sobrevivência: tem uma questão espiritual, cultural, de relação de pertencimento.

Durante a construção do EIA/RIMA [Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental], a gente não teve consulta prévia, que é um direito dos povos indígenas desde que o Brasil assinou a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. 

O que acontecia era a entrada de pesquisadores no território que faziam uma espécie de pesquisa sem dizer como seria a instalação das hidrelétricas. Eles queriam dizer que o povo concordou, sendo que isso não era verdade

Em 2013, houve uma grande manifestação. O meu povo, que é conhecido por ser muito bravo e valente, levou uns pesquisadores que estavam dentro do território até a praça de Jacareacanga e falou que só ia liberar depois que os representantes do governo e da Polícia Federal estivessem presentes. Muita gente foi perguntar porque eles estavam ali sem o conhecimento das lideranças indígenas. Acho que começou ali o meu interesse.

Teve também outra grande mobilização do meu povo, na região de Altamira, em 2013. Eles ocuparam o canteiro de instalação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, que afetaria a região do Alto Tapajós. As lideranças foram lá reivindicar, mas não conseguiram muita coisa. Muitas populações sofreram com a instalação desse megaprojeto. É o reflexo do que aconteceria se fossem instaladas hidrelétricas no Rio Tapajós.

A nossa região também é uma das que mais sofrem com o avanço do garimpo ilegal, principalmente nos últimos quatro anos. Não é que não existia antes, mas os novos equipamentos e o modo como tem sido feito têm trazido mais destruição. Por isso a importância de ter pessoas falando sobre isso

Sobre a nossa organização, os povos indígenas realizam várias mobilizações. Em abril, por exemplo, tem uma grande movimentação em Brasília que é o Acampamento Terra Livre. É um momento de refletir sobre a importância de estarmos organizados, tanto nas bases quanto a nível nacional, para defender os nossos direitos.

Já é possível perceber alguma mudança nesse cenário desde o começo do governo Lula, com a criação do Ministério dos Povos Indígenas e as operações de repressão ao garimpo ilegal na Amazônia?
Sim, a gente já consegue ver uma mudança com relação ao governo anterior. Até então a gente não tinha diálogo e não era bem visto. 

No Acampamento Terra Livre de 2018, por exemplo, os povos indígenas foram recebidos com bala de borracha e gás de pimenta. Então, eleger o Lula sempre foi motivo de muita esperança, por ele ser mais sensível às nossas causas. A gente sabe que anteriormente ele não fez um governo que era bom em tudo, mas a gente conseguia ter mais acesso.

Em dezembro de 2021, por exemplo, foi criada uma aliança entre os Munduruku, os Yanomami e os Kayapó para frear as invasões do garimpo ilegal, a Aliança em Defesa do Território. Hoje a gente já vê uma queda das invasões ilegais 

Se não tivesse apoio governamental, as nossas necessidades não seriam atendidas de fato. Com a criação do Ministério dos Povos Indígenas, as nossas pautas vão ter ainda mais prioridade dentro da política nacional.

A gente também teve atenção do atual governo sobre o PL 191 [o projeto de lei 191/2020 regulamenta a exploração de recursos minerais, hídricos e orgânicos em reservas indígenas]. Esse projeto afeta nosso modo de vida e deve ser retirado de pauta.

Agora, queremos derrubar o Marco Temporal. A intenção do governo anterior era aprovar, mas a gente resistiu: ficamos dias ocupando Brasília durante o Levante pela Terra e o Acampamento Terra Livre, ambos em 2022. O projeto não foi votado, graças aos nossos encantados. Esse ano vamos derrubar de vez essa ameaça.

Além das mobilizações locais, você tem viajado para o exterior para lutar pelo meio ambiente e pelos direitos indígenas. Qual sua impressão sobre esses espaços e como eles fortalecem as lutas?
Esses espaços não são pensados para nós. E as pessoas que tomam decisões por nós não nos representam. Tem países discutindo mudanças climáticas que estão mais interessados no fator econômico do que preocupados com o clima.

É necessário estar lá para debater, fazer networking, buscar soluções e pensar como trabalhar com mitigação e adaptação climática, não só de quem vive nos territórios indígenas, mas de quem está nos grandes centros urbanos, porque essas pessoas também têm os seus modos de vida afetados 

A COP26 teve uma das maiores participações da sociedade civil e o Brasil levou uma grande delegação indígena, sendo a maioria mulheres. 

Também é importante manter um pé atrás, para ver como isso vai chegar nos acordos. Foram liberados bilhões de dólares para adaptações de mudanças climáticas, mas esse valor nunca chega nas bases. 

Falam que sem a nossa luta não haverá um futuro, mas a gente já é o futuro. Estamos lutando aqui e agora por uma nova geração.

E falando sobre fronteiras, você foi a primeira mulher do seu povo a se assumir enquanto pessoa LGBTQIA+. Como foi? Se posicionar ajudou a mudar a forma como o tema é tratado dentro do território?
Quando eu resolvi assumir para a minha família, eles disseram que eu precisava ter cuidado sobre como isso chegaria nas pessoas. Até então a gente ouvia que “homem com homem, tudo bem; mas mulher com mulher, jamais”. Era algo que dava nojo nas pessoas.

Hoje, eu sou referência e recebo feedbacks muito bonitos de meninas e mães que me buscam para conversar, para perguntar como é, saber como foi quando eu era criança… são curiosidades, né? E eu vou com esse papel de mediar, de falar que é normal. 

Quando recebo esse tipo de pergunta é uma felicidade muito grande, porque se eu não falasse sobre isso, a gente ainda estaria muito atrasado. É algo que até então não se discutia e que, de alguma forma, eu consegui adentrar

Se a gente for pensar a nível histórico, os povos indígenas sempre tiveram isso dentro das comunidades, era super normal. Mas a partir da igreja isso foi sendo visto como algo que era do demônio. As coisas que a igreja impõe nas nossas culturas se refletem hoje no preconceito e no racismo que a gente encontra dentro das comunidades indígenas.

A questão LGBTQIA+ e as pautas de gênero e sexualidade são um assunto muito novo não só no meu povo, mas em vários povos no Brasil. No Acampamento Terra Livre de 2019, a gente teve a primeira mesa de debate sobre LGBTQIA+ dentro dos territórios. Vimos várias lideranças de vários territórios ouvindo as nossas demandas, foi um momento muito importante.

Você fala com frequência sobre a importância de se apropriar das redes sociais e de outros tipos de tecnologia para dar visibilidade à situação vivida pelos povos indígenas. Como unir os saberes ancestrais a novas ferramentas?
A gente se apropriou dessas tecnologias por entender que são ferramentas de luta que podemos usar a nosso favor. Claro que existe e sempre vai existir uma relação de respeito e troca com os mais antigos. Sabemos que nem tudo é possível registrar.

Antigamente vinham muitas pessoas de fora dos territórios para fazer registros. Elas divulgavam o que não podia e iam embora sem dar nenhuma devolutiva. Ao se apropriar dessas ferramentas, a gente começa a fazer nossas próprias produções para somar na proteção territorial e cultural.

Esse processo veio também para quebrar preconceitos, porque as pessoas não indígenas acham que a gente deixa de ser indígena por usar computador, telefone… sem saber a importância de poder produzir conteúdo para os nossos territórios 

São coisas que a gente vê como inovação e que o não indígena vê como “aculturação”. É um contraponto, inclusive às fake news. A gente contrapõe as notícias que surgem sobre o nosso território e está lá para debater, discutir, colocar a nossa versão.

Hoje a gente tem uma rede de comunicadores muito grande no Brasil e conseguimos saber o que está acontecendo no Sul ou no Centro Oeste estando no interior da Amazônia. 

Por isso o acesso a internet é tão importante. É um sonho que todos os territórios tenham internet e energia, para facilitar a nossa comunicação.

Você idealizou, junto com a cantora Maria Gadú, o projeto O Som do Rio, uma série documental que faz uma imersão na Amazônia. Como surgiu essa proposta?
Eu sempre fui muito fã da Maria Gadú, ela esteve presente em vários processos da minha vida através da música. O primeiro encontro foi no Acampamento Terra Livre, em 2019: eu fui tirar foto com ela e fiquei muito nervosa, coisa de fã.

A gente se encontrou de novo em 2020, durante a Semana da Greve Global Pelo Clima. Eu ia fazer uma live sobre esse tema com a participação de uma artista e quando veio o nome da Maria Gadú eu fiquei nervosa de novo [risos]. A gente começou a conversar sobre quais seriam os temas, fizemos a live e o nosso contato permaneceu. Tivemos outras oportunidades de se encontrar, mas nunca dava certo. 

Quando voltei da COP26, vi que ela faria um show em São Paulo e mudei a minha passagem para poder ir. Ela foi super receptiva e a gente conversou muito. Depois do show, saímos pra celebrar e ela me perguntou se eu queria fazer parte de um projeto no Rio Tapajós. Eu prontamente falei que sim

A gente seguiu conversando e eu entrei para a equipe de criação do roteiro, junto com o pessoal da Maria Farinha Filmes. Participei dessa construção levantando pontos que eu achava essenciais. 

Ao longo da série, falamos sobre ativismo, identidade, bioeconomia, demos protagonismo às pessoas que são do território e conseguimos mostrar não só os problemas, mas também toda a beleza do Rio Tapajós e da região. 

A gente recebe muito feedback de pessoas que se identificaram com o documentário, que passaram a ter essa preocupação, que querem falar sobre identidade e sobre a importância de proteger o território. Foi um trabalho lindo que eu tenho muito orgulho de ter participado.

Como você descreveria o que a série documental quer passar, e quais os desafios de passar esse tipo de mensagem?
O Som do Rio é um reflexo do que acontece nessa parte da Amazônia, mas também diz de outras partes dessa região. Buscamos trazer nosso olhar para somar na luta dessas populações e conscientizar as pessoas que essa é uma pauta emergencial. Com a floresta em pé a gente tem vida.

Queremos que as pessoas tomem essa luta para si. Não é só porque elas não estão aqui que não podem fazer parte disso. O desafio é sempre esse: como furar essas bolhas. Por isso foi importante a contribuição e o envolvimento do YouTube, que é uma das plataformas com maior acesso no país.

O filme foi selecionado para integrar o International Film Festival, que visa conectar projetos audiovisuais socialmente relevantes à grade curricular das aulas do MIT. Você esperava que a série ganhasse alcance internacional? Qual a importância de ocupar esses espaços?
Eu sabia que ia ter um alcance muito grande, mas não que fosse chegar a nível internacional. A quantidade de visualizações já me surpreende muito: são mais de 8 milhões de visualizações nos quatro episódios. É um alcance bem positivo e uma mega oportunidade para falar sobre o que está acontecendo aqui

A série chega de outras formas também, seja por matérias que a gente escreveu juntas ou mesmo pela oralidade. Eu sempre participei de muitas lives e, hoje, muitas das perguntas que eu recebo são sobre O Som do Rio. Alguns professores têm usado para formação acadêmica e em outras regiões do Brasil.

A minha ideia agora é apresentar a série em aldeias, territórios e comunidades que não têm acesso a energia ou internet e que ainda não conseguiram ver os vídeos

Recentemente eu estive no Médio Tapajós e eles falaram que nunca tinham visto porque não tinham internet. Penso muito nisso, em levar para as bases, que é de onde eu venho, para que as pessoas tenham cada vez mais conhecimento.

Por que o projeto se chama O Som do Rio?
O Rio Tapajós transpassa tudo. Ele é muito importante para a nossa região e para as pessoas que vivem aqui. Além disso, a Maria Gadú produziu uma música incrível nessa vivência, com a participação do grupo que eu faço parte cantando em Nheengatu, uma língua falada na região. 

São duas coisas que se complementam: a mensagem que a gente quer passar e a arte, que fez parte de toda essa construção. E aí nasce O Som do Rio, com os vários sons desse rio, que agora também está na música que ela criou.

De uma forma geral, você acredita que as lutas indígenas têm ganhado mais espaço na sociedade? Você enxerga o futuro com esperança?
Se eu não tivesse esperança, eu não estaria fazendo toda essa construção. 

Acredito que nós, povos indígenas, vamos conquistar os espaços que são nossos por direito. A gente está chegando em espaços que até então nunca imaginaria: hoje, temos representantes tanto na política quanto na Fashion Week

Eu tenho sim muita esperança de que a nossa problemática seja cada vez mais visível e que, futuramente, as pessoas sejam mais conscientes. A mobilização da juventude cresceu muito no Brasil, os jovens se importam com o que acontece e trazem soluções que vão atender muitas demandas a nível regional e nacional. 

Meu sonho é esse: que as pessoas sejam mais respeitosas e mais preocupadas com as nossas vidas.

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