Continuamos a série que explica as principais palavras do vocabulário dos empreendedores da nova economia. São termos e expressões que você precisa saber: seja para conhecer as novas ferramentas que vão impulsionar seus negócios ou para te ajudar a falar a mesma língua de mentores e investidores. O verbete de hoje é…
O que é: DAO é a sigla para Decentralized Autonomous Organization ou Organização Autônoma Descentralizada, comunidades digitalmente nativas que ganham espaço na Web3. Na prática, é um grupo que se junta por meio de um contrato inteligente — viabilizado pela blockchain — para alocar recursos e alcançar um objetivo em comum.
Esse coletivo pode ser formado por pessoas que nem se conhecem pessoalmente e que se comunicam online, geralmente pela rede Discord (a mesma usada por gamers).
As regras do grupo são definidas pelos próprios integrantes, que exercem seus direitos de governança por meio da aquisição de tokens emitidos e vendidos pela DAO.
Essa organização é descentralizada na medida em que não tem hierarquia – não há um CEO, todos os membros com tokens têm poder de voz e precisam votar para definir como o tesouro do grupo será usado e quais os próximos passos. Além disso, não há uma sede e todos que trabalham ou investem na DAO recebem recompensas financeiras em tokens – uma forma de equity.
E é autônoma porque suas regras e tesouros são codificados e validados automaticamente na blockchain (por isso, é possível começar uma sociedade deste tipo com alguém que você não conhece, uma vez que as ações serão tomadas apenas se estiverem de acordo com os códigos abertos da DAO).
Segundo um artigo de Cooper Truley ou Coopahtroopa, como é conhecido o estrategista de cripto ligado a projetos de Economia dos Criadores, atualmente existem mais de 100 organizações autônomas descentralizadas nos mais variados nichos como mídia, venda de colecionáveis, investimentos, entre outras, que juntas somam 14 bilhões de dólares em ativos.
Tentando simplificar a sigla: Existem algumas definições feitas por especialistas que ajudam a entender as DAOs de forma mais simples. Na última edição da SXSW, o tema surgiu com força e algumas personalidades resumiram o conceito em uma conversa sobre o assunto. Entre elas, Flex Chapman, cocriador do projeto The Krause House, ligado à NBA, que afirmou: “As DAOs são uma comunidade online que tira vantagem dos princípios da Web3, como NFTs, Tokens e DeFi para ganhar superpoderes”.
O já mencionado Coopahtroopa foi além na simplificação: “Vamos dizer que seja um grupo de chat com uma conta bancária conjunta”.
Outros especialistas comparam ainda a DAO a uma versão aprimorada do crowdfunding, só que com menos riscos de perfis falsos serem criados nas plataformas de doações por conta da transparência oferecida pela blockchain. Há ainda quem compare as DAOs a cooperativas.
“É como se fosse uma cooperativa 2.0 na Web3. A gente recebe em tokens pelo trabalho prestado, como as cotas de uma cooperativa tradicional, e elas só vão ter valor no mercado se a DAO efetivamente estiver entregando algo que faça sentido para a sociedade”
Quem diz isso é Daniel Koch, membro-fundador da primeira DAO do país, a Bankless BR DAO, junto de Bruno Moniz, João Henrique Costa e Victor Cioffi.
Como surgiu a Bankless, a primeira DAO do Brasil: Para contextualizar, a Bankless é uma DAO de mídia, com foco em produção e curadoria de conteúdo sobre como ser bankless, ou seja, ser independente de instituições financeiras centralizadas.
O projeto nasceu como uma empresa convencional de mídia, que traduzia artigos da Bankless HQ, empresa estadunidense de mídia e educação cripto fundada por Ryan Sean Adams e David Hoffmann. Enquanto João fazia as traduções, Victor cuidava do marketing do negócio.
A dupla de fundadores estadunidense, por sua vez, veio a criar em 2019 uma DAO para expandir sua atuação a nível global. Hoje, o grupo congrega mais de 15 mil pessoas.
Inspirado por esse movimento e pela necessidade, pois João precisou se afastar temporariamente da operação, a dupla brasileira teve a ideia de criar, em agosto de 2021, uma organização autônoma descentralizada. Assim nasceu a Bankless BR DAO, que hoje conta com mais de 60 membros. Aqui, o grupo fala com mais detalhes sobre sua fundação.
Hoje, a Bankless Brasil é a marca que representa as mídias sociais, artigos, canal do YouTube e podcast do grupo. Já a DAO abrange a comunidade e governança e tem como foco criar projetos para tornar sua operação autossustentável.
Atualmente, a receita da Bankless vem da assinatura de sua newsletter (a DAO Talks), patrocínio de seu podcast, newsletter e canal no YouTube, vendas de camisetas e bonés da marca, de NFTs (periodicamente a Bankless Brasil faz curadoria de lançamentos de artistas brasileiros e internacionais) e de seu token de governança ($BANK), apoios financeiros sem contrapartida, além de valores que recebem da Bankless global por fazerem parte da comunidade.
Quem inventou o termo e quando: Valendo-se da proposta da Web3, que promete uma internet descentralizada e baseada em criptoativos e NFTs, Vitalik Buterin, cocriador da rede Ethereum, desenvolveu em 2013 o conceito das DAOs.
Apesar de não ter sido criada agora, sua popularização (na bolha tecnológica) deve-se ao fato de as pessoas estarem cada vez mais desconfiadas das instituições tradicionais, como governos e grandes empresas de tecnologia, as big techs.
Por sua vez, um sistema coletivo, com processos automatizados e código público, fomenta o conceito de trustless, ou seja, de não precisar confiar em outra pessoa, apenas na tecnologia. Outro fator que impulsionou o debate sobre as DAOs foi a mudança na relação das pessoas com o trabalho durante a pandemia (Saiba mais no item “As DAOs são o futuro do trabalho?”).
Victor explica que, de fato, o que há hoje em funcionamento são DOs (Digital Organizations, ou Organizações Digitais).
“A DAO é uma organização que vai se governar através de contratos inteligentes, então a proposta é colocar o contrato no centro e as pessoas ao redor. Mas hoje as DAOs ainda dependem muito do envolvimento e do esforço humano.”
Ele complementa: “Há vários gaps tecnológicos e de automatização que fazem com que as DAOs não sejam totalmente autônomas e descentralizadas, mas já existe esse consenso de comunidade e o modelo mental para que isso aconteça”.
Exemplos de DAOs: As organizações autônomas descentralizadas podem ser constituídas para inúmeros objetivos e ter começo, meio e fim ou atuar de forma perene.
Uma DAO que ficou mais conhecida foi a ConstitutionDAO, criada em 2021, para comprar, em um leilão da Sotheby’s, uma cópia original da primeira Constituição dos Estados Unidos. O grupo, formado por mais de 17 mil pessoas, conseguiu arrecadar – em três dias – mais de 47 milhões de dólares em ethereum. O objetivo era devolver à população esse documento que está nas mãos de poucos.
Apesar do montante arrecadado, o valor foi superado pelo lance de Ken Griffin, gerente de fundos de hedge e CEO da Citadel LLC. Caso a DAO tivesse ganhado o leilão, os participantes que compraram o token de governança teriam o direito de votar nas decisões relacionadas à exibição e preservação da constituição. Com o objetivo frustrado, a ConstitutionDAO prometeu reembolsar seus integrantes e dissolveu a iniciativa.
Existem também projetos ligados ao mundo da arte, como por exemplo o Trojan DAO, que nasceu em Atenas em 2019 e busca financiar projetos artísticos. A ideia foi impulsionada pela proliferação de espaços e iniciativas artísticas alternativas que se propõem a serem cogeridas e operadas pelos próprios artistas, sem chance de censura e com a possibilidade de operar além de suas fronteiras.
Durante o SXSW, o filho do cineasta Francis Ford Coppola, Roman Coppola, falou sobre a Decentralized Pictures, uma DAO sem fins lucrativos associada ao seu estúdio, o American Zoetrope, que busca usar tokens para selecionar e financiar projetos cinematográficos independentes e de comunidades carentes.
No universo da música, a banda Maroon 5 ressignificou o propósito de um fã clube lançando uma DAO. Inicialmente, trata-se de uma coleção de NFTs que ao serem comprados pelos fãs dão a eles direito de votar onde alocar os fundos arrecadados com o propósito de combater as mudanças climáticas.
No mundo da moda, a MetaFactory produz e vende artigos físicos e virtuais. Quem c compra o $ROBOT, token da marca, pode participar da curadoria dos designers que farão parte do marketplace, opinar na estratégia comercial e no uso do fundo monetário da DAO.
Outro exemplo é a AssangeDAO, organização que tem como token nativo o $JUSTICE e luta pela liberdade do fundador da WikiLeaks. Em uma de suas ações, o grupo arrecadou mais de 50 milhões de dólares para comprar em um leilão o NFT Clock, criado pelo próprio Julian Assange e pelo artista Pak. A obra representa o número de dias que o jornalista ficou preso (e segue sendo atualizado). O valor foi destinado ao fundo de defesa legal do jornalista.
O site do Ethereum ainda lista possíveis usos das DAOs, como caridade, já que as organizações autônomas descentralizadas poderiam aceitar doações do mundo todo; criação de redes de freelancers, que conseguiriam usar os fundos de sua DAO para alugar espaços de trabalho ou arcar com assinatura de softwares; e criação de fundos de investimento.
Vantagens: Teoricamente, por usar a tecnologia da blockchain, as DAOs proporcionam mais segurança e transparência nos processos de tomadas de decisões, além de serem mais ágeis, já que muita burocracia é eliminada. Daniel explica na prática o que isso significa:
“Posso criar uma DAO hoje e começar a operar hoje mesmo, sem a necessidade de fazer um contrato social, contratar advogados etc. Neste sentido, a DAO acelera um novo negócio de maneira exponencial”
Esse tipo de organização também ajuda a agilizar o processo de captação de recursos, engajar investidores, tornar a operação mais barata e construir um novo tipo de governança (diferente do tradicional, do topo para baixo). Sobre este último ponto, Bruno afirma:
“Há muita autonomia dos departamentos, que a gente chama de guildas, o que torna os processos mais ágeis, por não existir microgerenciamento. Não tem aquela escalada burocrática em que é preciso de três estágios de aprovação para passar um projeto. A gestão é bem mais horizontal”.
Victor acrescenta: “Tudo isso torna uma DAO uma organização muito mais perene do que uma startup ou uma empresa tradicional, que depende das figuras dos fundadores ou dos executivos C-levels”.
João, por sua vez, comenta que essa é uma forma fácil de reunir pessoas com muito talento, independente de gênero, idade, raça, local onde vive etc.: “A DAO não precisa da pessoa por inteiro. Ela pode dedicar 5% de seu tempo em um projeto, não há exclusividade. Por isso, tem gente que participa de várias DAOs ao mesmo tempo”.
Desvantagens: Na maioria dos países, as DAOs ainda não têm reconhecimento legal, o que gera insegurança jurídica.
“Isso faz com que as DAOs não se registrem em lugar nenhum, como é nosso caso, o da Bankless global e o da MakerDAO, a maior DAO do mundo. Ou acabem se registrando em países mais acolhedores a essas iniciativas”, afirma Daniel.
Por enquanto, as Ilhas Marshall são a única nação a reconhecer as DAOs como personalidades jurídicas. Nos Estados Unidos, o estado de Wyoming reconheceu legalmente a primeira DAO do país. Além dele, Delaware e Vermont incluíram a DAO na categoria das Limited Liability Company, algo semelhante ao LTDA no Brasil. Já nas Ilhas Cayman e na Suíça, as DAOs têm estrutura legal de uma sociedade de fundação.
A falta de conhecimento sobre Web3 e tokens também é um obstáculo, pois governos e a maioria das empresas não estão preparados para operar neste universo, como diz João:
“Esse é um obstáculo para a popularização das DAOs, mas vai acontecer a partir da educação e conhecimento das pessoas sobre o tema. Estamos trabalhando para isso, mas ainda há um caminho longo a percorrer”
Entre outras desvantagens, os especialistas apontam o risco de as DAOs serem usadas para fins criminosos. Daniel diz que esse é sempre um ponto negativo relacionado ao universo cripto, mas que essa lógica não é necessariamente verdadeira.
“Claro que o argumento principal sempre cai nisso de que é golpe, pirâmide, dinheiro para traficante. A gente escuta isso há tempos, desde a criação do Bitcoin. É um discurso histórico construir narrativas que destruam novas tecnologias para a manutenção de status quo. O problema não é a tecnologia, são as pessoas.”
Por fim, segundo Victor, apesar de a descentralização ser apontada como vantagem, pois torna os processos colaborativos, a falta de uma liderança também pode ser uma barreira, fazendo com que grandes decisões sejam mais demoradas.
Desafios: Para o pessoal da Bankless BR DAO, os principais desafios são de onboarding, pois não existe um RH ou um processo de seleção de candidatos. As DAOs fazem um crowdsourcing de talentos de sua própria comunidade e acabam trabalhando com aquelas que mais engajam.
A retenção desses profissionais também é uma questão, pois se eles não se envolverem com a proposta, corre-se o risco de ficarem pulando de uma DAO para outra ou mesmo para uma empresa da Web2 que pague mais. E aí entra outro desafio, o da remuneração. Os trabalhos são pagos com tokens, que só vão apresentar liquidez quando as proposta da DAO estiver entregando algo que faça sentido para a sociedade.
A complexidade de operação também é um grande desafio. “Ainda faltam exemplos maduros para entender o que funciona e o que não funciona em termos de governança. Por isso, a Bankless estuda criar uma consultoria para esses processos, uma espécie de DAO-As-A-Service”, comenta João.
DAOs made in Brasil: Além da Bankless, surgiu uma nova DAO no Brasil em fevereiro deste ano, a AlmaDAO.
Composto por 28 membros, o coletivo é formado, como o próprio site descreve, por “empreendedores, criadores e fazedores”, entre eles: Rony Meisler (Grupo Reserva), Laio Santos (Rico Investimentos), Tallis Gomes (Easy Taxi) e Luccas Riedo (G4 Educação).
O objetivo desse time é impulsionar a Web3 no Brasil, educando os interessados com materiais distribuídos nas redes sociais e trazer dados mais técnicos sobre o conceito para quem já está mais imerso neste mundo.
Além do pilar de educação, a AlmaDAO busca formar uma comunidade de envolvidos com o tema, oferecer capital, conexões e mentoria para acelerar o lançamento de soluções Web3 no país.
“É algo extremante importante ver caras com a visibilidade deles fazerem algo para tornar esse conceito mais conhecido”, diz Daniel. “Precisamos que o mercado olhe para as DAOs, pois o resto do mundo está olhando — e, se o Brasil não fizer isso, vamos ficar para trás.”
O futuro do trabalho é nas DAOs?: Assim como as DAOs, o descontentamento com a relação que temos com o trabalho também é uma tendência crescente. Basta ver o movimento da Grande Renúncia, a insatisfação das pessoas por terem que voltar ao modelo presencial após dois anos em esquema remoto e a reflexão sobre o que é sucesso trazida pela pandemia.
É neste cenário que as DAOs surgem com a promessa de trabalhos de meio período (ou menos), no horário e local desejado e com algo que tenha significado para o trabalhador, afinal nas DAOs as pessoas se unem por um propósito em comum que não necessariamente seja o lucro.
Em um artigo traduzido pela Bankless Brasil, David Hoffman exemplifica como essa contratação funciona. Suponha que uma DAO acaba de ser lançada. Seu token ainda não tem um valor de mercado significativo; então, se ela quiser contratar uma agência para construir seu site, não terá capital para isso. Por outro lado, se uma pessoa com a habilidade de construir sites acredita no potencial daquela DAO e se identifica com sua missão, ela pode prestar este serviço de forma voluntária ou com o objetivo de acumular tokens, que deverão ganhar liquidez com o passar do tempo.
Segundo os membros fundadores da Bankless BR DAO é possível viver trabalhando em DAOs, mas no Brasil isso ainda é muito difícil. E mesmo lá fora é preciso trabalhar em grandes DAOs, com investimento externo, para conseguir se manter dessa maneira. Mas as projeções são otimistas:
“Muitos projetos coletivos de arte, modelos de negócio e startups podem vir a se tornar uma DAO”, afirma Victor. “Acho que o ecossistema de organizações autônomas descentralizadas de médio e pequeno porte no Brasil vai ser muito fértil daqui para frente.”
Como começar: Qualquer grupo pode começar uma DAO para atingir um objetivo coletivo.
Mesmo se o interessado não tiver o token da organizações autônoma descentralizada de seu interesse, pode participar de suas reuniões comunitárias regulares no Discord ou encontros online para iniciantes. Existem inclusive DAOs que realizam processos de integração semanais para novos entrantes.
No caso da Bankless, os interessados podem conhecer mais sobre o grupo no servidor deles no Discord.
Para saber mais:
1) Confira todos os artigos já publicados pela Bankless Brasil sobre o tema;
2) Leia no Money Times: “O futuro da comunidade cripto está nas organizações autônomas descentralizadas”;
3) Assista na Forbes a um vídeo que resume o que são DAOs;
4) Leia no MIT Tech Review o artigo “DAO: um novo modelo de organização”.