Continuamos a série que explica as principais palavras do vocabulário dos empreendedores da nova economia. São termos e expressões que você precisa saber: seja para conhecer as novas ferramentas que vão impulsionar seus negócios ou para te ajudar a falar a mesma língua de mentores e investidores. O verbete de hoje é…
SHARENTING
O que acham que é: O simples ato de pais compartilharem fotos dos filhos nas redes.
O que realmente é: Sharenting é o termo utilizado para definir o ato excessivo de postagens e compartilhamentos, por parte de pais e mães (ou outro adulto responsável), de imagens e informações pessoais de seus filhos em redes sociais.
Formado a partir da junção do verbo to share (compartilhar) com parte da palavra parenting (pais), o neologismo foi cunhado originariamente como orversharenting, em 2012 (leia mais no item “Histórico”), para nomear uma prática que, já naquela época, era recorrente e desmedida.
O termo chega ao fim da década mais atual do que nunca. No caldo em que se insere estão os escândalos sobre uso indevido de dados de usuários das redes sociais, a transformação dessas informações em matéria-prima altamente lucrativa para empresas (no chamado Capitalismo da Vigilância), a questão do Direito ao Esquecimento e ainda uma série de debates que vêm ocorrendo sobre o direito à privacidade e que levaram o Brasil a criar Marco Civil da Internet.
Junte a isso o fato de que já existe a primeira geração que pode ter a vida toda documentada online (a partir do primeiro ultrassom, ou antes, se bobear) e que, da estimativa de 2.65 bilhões de pessoas usando mídias sociais em 2018, espera-se um salto para quase 3,1 bilhão em 2021, de acordo com um a Statisa, empresa global de dados de mercado e consumo. O caldo parece próximo a entornar.
A psicanalista Alessandra Martins Parente fala que são intensas as críticas e discussões sobre os limites que deveriam ser estabelecidos para os adultos no compartilhamento da vida privada das crianças nas redes sociais. “As análises giram em torno dos impactos emocionais e subjetivos sofridos pelas crianças com tal exposição”, afirma. “Há até mesmo uma preocupação sobre a construção de uma memória pública e de um registro imagético de eventos e momentos que não se sabe ao certo como serão utilizados em outros períodos da vida daquele sujeito.”
Nos últimos seis meses, abordaram ou voltaram ao tema o New York Times (duas vezes), a The New Yorker, a Forbes, a Fast Company e a BBC inglesa. O enfoque são as consequências negativas do excesso de compartilhamento. Há, ainda, o recém-publicado Sharenthood: Why We Should Think Before We Talk About Our Kids Online, livro de Leah Plunkett, diretora de academic success da faculdade de Direito da Universidade de New Hampshire e faculty associate no Berkman Klein Center for Internet and Society, de Harvard.
Histórico: Em 2012, o jornalista americano Steven Leckart criou o termo oversharenting para falar sobre “a tendência, por parte dos pais, de compartilhar muitas informações e fotos de seus filhos online”, em um artigo na seção Words of the Week, do The Wall Street Journal.
Em 2015, o vídeo “‘Sharenting’ – A Growing Problem On Social Media?”, da CBS New York, popularizou o tema.
No ano seguinte, a palavra foi adicionada ao Collings English Dictionary e este ano ao dicionário do jogo Scrabble.
(Os links dessas informações estão no item “Para saber mais”).
Consequências negativas:
– Invasão de senhas, identidade falsificada, fraudes com empréstimos, transações com cartão de crédito e compras online podem acontecer com informações como nome, idade, data de nascimento, nome de animais de estimação, de times esportivos etc.
É importante saber que há um tipo de golpista (o data broker profiling) que coleta e salva dados no presente para usar no futuro, embora muitas dessas informações, assim como fotos e vídeos, podem simplesmente permanecer na rede da infância à juventude da criança.
– Bullying em ambientes coletivos como escola, faculdade, clube, trabalho etc. podem derivar tanto de fotos ou posts com informações que os pais consideram inocentes e engraçadas (sem saber que, mais para frente, podem se tornar uma questão para os filhos) como de publicações que relatam problemas das crianças e que pais fazem em busca de ajuda ou informação nas redes (sobre uma doença rara, por exemplo).
– Dificuldade de conseguir vaga de estágio ou emprego pelos mesmos motivos relatados acima. Processos seletivos ou de pré-seleção já são baseados em algoritmos.
– Ser alvo, como todos somos hoje, de manipulação (política, comercial ou para qualquer fim de controle, tanto público como privado), já que quanto mais dados há de uma pessoa mais acurado é o perfil que dela pode ser feito.
– Risco de interferência no processo de entendimento que a criança constrói de si mesma. Ao montar um mosaico perfeito de imagens, vídeos e informações, sob sua perspectiva, olhar e desejo, os pais ajudam a forjar a identidade da criança que, por sua vez, tende a querer agradar os pais.
– Risco de que a criança perca a espontaneidade caso a maioria de seus atos, até os mais prosaicos, estiverem na mira de uma lente.
– Não respeitar a criança como um ser desejante ou com direito a opiniões. Muitos pais sequer perguntam a seus filhos se podem postar suas fotos e sequer desconfiam que a resposta poderia ser “não!”
É ver de forma bastante clara o item acima no vídeo “If you didn’t ‘sharent’, did you even parent?”, matéria do New York Times publicada ano passado. Uma menina de sete anos, uma garota de 16 e um jovem de 18 interagem com as mães sobre o fato de não gostarem de ter suas vidas expostas online. A contraposição de argumentos é muito interessante.
Dados: Um estudo do banco britânico Barclays, feito em 2018, e citado pela BBC em ‘Sharenting’ puts young at risk of online fraud, estima que, até 2030, dois terços dos casos de fraude de identidade enfrentados pela geração jovem terão relação com Sharenting.
Um estudo da empresa britânica Nominet, feito em 2016, e citado no artigo The Problem With ‘Sharenting’, do New York Times, diz que uma criança comum terá, até o quinto ano de idade, quase 1.500 fotos suas postadas online.
Postar ou não postar: É certo que, da forma como vivemos hoje, é difícil evitar o Sharenting. O texto “The apps combatting ‘sharenting’”, publicado em agosto, na BBC inglesa (link no item “Para saber mais”), traz uma lista de aplicativos criados para esse fim, em que o compartilhamento fica restrito a familiares e amigos íntimos.
Pode ser uma boa opção mas vale levantar duas questões: as empresas garantem políticas claras e honestas de privacidade — mas não é isso que garantem todas as empresas? E se não houver cumprimento? E ainda: o que move e alimenta o compartilhamento nas redes sociais não é o fato de acontecerem precisamente naquelas redes sociais?
Não que o fim do mundo esteja próximo (ao menos não por isso). Com informação, e conhecendo todos os riscos envolvidos no que aparenta ser um simples compartilhamento, muitos pais podem pesar menos a mão e passar a filtrar mais seus desejos e ideias e menos as fotos de seus filhos. Ou, em vez de algo sobre eles, postar um conteúdo sobre si mesmo. Algo como um processo de redução de danos.
Eis outra questão: Para Parente, o Sharenting não pode ser analisado apenas por riscos. “Se, por um lado, ele se torna mercadoria a ser deglutida em likes e compartilhamentos, por outro, é também ferramenta para que novas narrativas políticas ganhem consistência”, diz.
Como exemplo, a psicanalista cita mães cujos trabalhos árduos eram invisíveis. “Elas têm construído narrativas interessantíssimas a respeito da maternidade e da relação com seus filhos. Isso, sem o olhar do outro em sua versão pública, não existiria já que é o testemunho público que efetivamente lhe dá reconhecimento e legitimidade”, conta.
Para saber mais:
1) Leia, no The Wall Street Journal (paywall), The Facebook-Free Baby — Are you a mom or dad who’s guilty of ‘oversharenting’? The cure may be to not share at all, texto de Steven Leckart.
2) Assista, na página da CBS New York no YouTube, ao vídeo Is ‘Sharenting’ A Growing Problem On Social Media?
3) Leia, na Fast Company, Are you sharing too much about your kids online? Probably, artigo de Leah Plunkett.
4) Leia, no New York Times, If you didn’t ‘sharent’, did you even parent? (Agosto de 2019).
5) Leia, na New Yorker Magazine, Instagram, Facebook, and the Perils of “Sharenting”. (setembro 2019)
6) Leia, na BBC, The apps combatting ‘sharenting’.