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Vida e morte de uma startup: “Percebi que dar adeus a uma empresa construída por nós é igual a um luto”

Lettycia Vidal - 23 ago 2024 Lettycia Vidal fundou a Gestar e hoje é cofundadora da Mirada.
Lettycia Vidal fundou a Gestar e hoje é cofundadora da Mirada.
Lettycia Vidal - 23 ago 2024
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Foram longos sete anos de dedicação desde a elaboração e entrega do meu TCC até os dias atuais, em que a Gestar já era muito mais que um projeto saído da universidade. 

Como muitos sabem, a Gestar sempre foi mais do que uma startup na minha vida, ela ocupava lugares como um quase membro da minha família. Afinal, foi uma história familiar que me despertou para a temática da saúde materno infantil. 

A minha mãe sofreu violência obstétrica ao parir o meu irmão. Nessa época, eu tinha apenas 13 anos, mas vi a minha mãe chegar em casa ainda com as sequelas dessa intervenção violenta

A rotina da nossa família mudou e não apenas pela chegada de um novo membro, mas sim porque a mobilidade dela era limitada.

Desde esse momento, passei a me questionar por que a minha mãe tinha vivido aquilo, por que tinha acontecido só com ela? Essa era a pergunta que mais martelava na minha cabeça e se repetiu tanto que na época cheguei à decisão de que não seria mãe. Não queria ter a chance de passar pelo mesmo. 

NA FACULDADE, VIREI “A DOIDA DOS PARTOS” E MEU INTERESSE PELA ÁREA MATERNO-INFANTIL CULMINOU EM UM TCC SOBRE O TEMA

A partir desse trauma, comecei a me interessar por como tinha sido o parto de todas as mulheres ao meu redor. E mesmo que elas tentassem me contar de uma forma tranquila, devido à minha idade, entendi que ali existiam muitas histórias de dor, sofrimento, desassistência e falta de informação.

Foram cinco anos até que eu entrasse na universidade e uma das minhas primas pudesse ter um desfecho respeitoso de assistência ao parto.

Nesse mesmo ano, após conversar com ela e descobrir um segundo caminho possível, passei a estudar sobre o mundo da saúde materno-infantil — e cheguei a ser apelidada pelas minhas amigas de faculdade de “a doida dos partos”.

Com 18 anos, eu estava cursando publicidade, sendo a única menina que se interessava pelo tema da maternidade de forma extremamente dedicada. Ali, sentia que existia a chance de fazer algo diferente para o mundo.

E foi assim que passei a faculdade inteira atenta a essa temática. Mesmo sabendo que também queria continuar sendo publicitária, a minha mente se movimentava numa tentativa de criar algo que me possibilitasse atuar nos dois segmentos

Em 2017, nasceu a Gestar em forma de TCC, que diga-se de passagem, foi nota 10. A Gestar foi a minha criação que de alguma forma pretendia mudar o mundo por meio de uma plataforma que conectava profissionais que atuam de forma humanizada com a saúde materno-infantil a mães, pais e gestantes.

VESTI O CHAPÉU DE EMPREENDEDORA PARA TRANSFORMAR MEU TCC EM UM NEGÓCIO

Algo curioso nessa trajetória é que eu nunca quis empreender, essa não era uma etapa dentro dos meus sonhos. Mas descobri que se quisesse realizar essa mudança no mundo, precisaria vestir esse chapéu.

E foi entendendo isso que desde 2019 comecei a participar dos programas de aceleração, incubação e desenvolvimento de startups.

Passei por lugares fundamentais para a construção da minha “eu-empreendedora”, como Shell Iniciativa Jovem, B2Mamy, Google for Startups, Grupo Fleury… Foi com o suporte de todas essas instituições que a Gestar ganhou pernas, braços e soube caminhar

Ao longo dos quase quatro anos de funcionamento da Gestar, realizamos diversas atividades e oferecemos nossos serviços de formas variadas, tudo com objetivo de validar qual o melhor formato e entender o que melhor atendia cada paciente e profissional.

Foram mais de 100 eventos online, entre talks, aulas abertas e rodas de conversas comandadas por profissionais junto de tentantes, gestantes e mães.

Conseguimos impactar mais de 8 mil famílias com nosso conteúdo e atendimentos de saúde junto do apoio de mais de 300 profissionais que passaram pela plataforma.

APESAR DE SUA RELEVÂNCIA, A GESTAR NÃO RESISTIU À FALTA DE INVESTIMENTOS

Em um mundo onde uma em cada quatro mulheres sofre violência obstétrica, 25% das mães sofrem com depressão parental e mais de 50% saem do mercado após a maternidade, a Gestar pareceu imprescindível.

Por outro lado, apenas 2% dos investimentos são destinados a empresas fundadas por mulheres; e quando fazemos outros recortes dentro dessa base, vemos que os números são ainda menores ou quase nulos

Esse foi um dos motivos que levou a Gestar ao seu encerramento, mesmo sendo um serviço necessário. Um marketplace demanda muito investimento e nós já não tínhamos mais recursos para levar o projeto à frente.

Antes da decisão, muitas possibilidades foram levantadas. Uma delas foi o atendimento social, que ofertou serviços de qualidade pelo valor de 40 reais a mães e famílias de baixa renda.

E foi com ele que batemos metas de conversão e conquistamos nosso melhores feedbacks, tanto de profissionais quanto das famílias. Mas, no fim, não deu para continuar.

ATÉ QUANDO A SAÚDE DE MULHERES E CRIANÇAS NÃO SERÁ PRIORIDADE?

A Gestar me deixou muitos aprendizados pessoais e profissionais. Destaco um que foi o que mais me manteve de pé ao longo dessa caminhada: a resiliência.

Não existia um dia em que o empreendedorismo não me fizesse resiliente por algum motivo.

Além disso, ressalto o forte aprendizado em liderança, principalmente a de pessoas. Descobri que liderar pode sim ser uma das melhores coisas.

Lidar com as pessoas, entender seus momentos, ser apoio na estruturação e desenvolvimento de carreiras são uma das maiores gratificações que já tive ao longo da minha vida profissional. E isso eu devo à Gestar.  

Depois de compartilhar a minha trajetória empreendedora, essa é a reflexão que eu quero deixar: a Gestar encerrou suas atividades, mas outras startups fundadas por mulheres estão acabando de nascer

Vamos deixar que o destino seja o mesmo? Até quando a saúde de mulheres e crianças não será uma prioridade?

O FIM DE UMA STARTUP É TAMBÉM UM LUTO A SER VIVIDO

Após a decisão do fim, percebi que a despedida de uma empresa que foi construída por nós é igual a um luto.

Passamos por todos os estágios, dores, dissabores, medos… Mas existe um momento em que a luz no fim do túnel aparece e nesse momento a gente passa a se refazer como pessoa e profissional.

Algo que acho válido destacar: o encerramento não é rápido e a lentidão vira amiga da tristeza. São tantos processos e burocracias prorrogando aquela sensação que a gente só deseja — e precisa — que acabe

Sempre aparece um encerramento de conta bancária ou um cancelamento de contas de e-mails; também chega o momento de organizar o drive e apagar tudo aquilo que não será mais utilizado ou dar um adeus às redes sociais tão duramente construídas. E, por fim, chega o dia da última assinatura como CNPJ.

São verdadeiros rituais de despedida que nos ajudam a processar o fim, mas que também nos fazem recordar tudo de bom que foi construído ao lado de pessoas maravilhosas. 

FUI MAIS LONGE DO QUE MINHA MÃE E MINHA AVÓ, E ESPERO QUE UM DIA MINHAS FILHAS POSSAM AVANÇAR MAIS DO QUE EU

Olhando para trás, eu me sinto muito feliz e realizada por tudo que foi possível conquistar e construir junto da Gestar, das minhas sócias e da nossa equipe fiel.

Nosso sonho era mudar o mundo. Tenho certeza que conseguimos mudar o mundo de muitas famílias. Esse é um feito e tanto para os limites que tínhamos.

A minha avó paterna me disse em sonho a seguinte frase: “Eu nunca imaginei que algo meu chegaria tão longe”. E foi a partir dessa frase que eu entendi a proporção de tudo que construí com a Gestar.

Eu fui mais longe do que a minha avó, andei mais do que a minha mãe e espero que minhas filhas possam um dia andar mais do que eu. Pois é assim que seguimos construindo as mudanças que queremos ver no mundo

Hoje, encerro um ciclo lindo de muita dedicação à saúde materno infantil de qualidade e respeito. Com a certeza de que tudo que foi feito marcou — e seguirá reverberando — a vida de todas as famílias e profissionais que estiveram junto da gente, em uma única esperança. 

Deixo aqui um depoimento de uma de nossas mães atendidas, que descreve bem o quanto nosso impacto foi necessário e gerou frutos:

“Essa ideia de negócio é maravilhosa, pois é possível alcançar pessoas como eu que não teria como pagar uma terapia e o fato de terem olhado especificamente para mulheres gestantes e puérperas é muito bom, pois é um público um pouco invisível na sociedade”.

Agora, volto à minha skin publicitária de carteirinha em uma nova aventura, junto de mais três sócias, na Mirada

Trata-se de uma agência boutique com foco em desenvolvimento e gestão de marcas através do branding e da experiência do cliente. Focamos em gerir marcas com uma comunicação estratégica, clara e fluida que gere/construa credibilidade.

E obrigada a você por chegar até o fim deste relato. Foi um prazer poder compartilhar um pouco dessa montanha-russa que é o recomeço após o fim.

 

Lettycia Vidal é publicitária, especialista em inovação e negócios e atua como mentora de empresas em diferentes estágios. Fundou a femtech Gestar, que encerrou as atividades em 2024, e atualmente é sócia da Mirada.

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