Muita gente ouviu falar da Laboriosa 89, casa localizada na rua de mesmo nome, na Vila Madalena, em São Paulo. Isso porque a casa não era só uma casa. Desde fevereiro de 2014, abrigava um experimento bastante inovador, ligado a novas formas de organização e trabalho em rede. O espaço, porém, está fechando as portas. No último dia 30, em um comunicado no grupo do Facebook, o proprietário do imóvel anunciou que as atividades da rede naquele espaço serão encerradas no próximo dia 15 e as fechaduras da casa, trocadas. É o fim do ciclo. Será o fim de tudo? Longe disso.
Essa história começou em 2012, na Madalena 80, casa antecessora da Laboriosa 89, no mesmo bairro. Lá, Oswaldo Oliveira — economista, que depois de alguns anos no mercado financeiro se focou no estudo e prática da ciência de redes — fez com que brotassem os princípios base de uma organização mais distribuída e menos centralizada, como a autogestão, colaboração e horizontalidade. Em 2013, o movimento já era bem grande e a casa ficou pequena.
Só então, com alguma experiência recolhida da Madalena 80 e após várias rodadas de cocriação envolvendo muita gente conectada a projetos que compartilhavam dos princípios de rede (incluindo pessoas de outras casas colaborativas ao redor do Brasil), que a Laboriosa 89, ou Lab89, nasceu.
De propriedade do coach Fabio Novo (que escreveu o comunicado citado no início desse texto), e antes sede de uma agência de publicidade, o espaço físico abriu as portas para o experimento de uma casa aberta. Na entrada, chaves da porta disponíveis para quem quisesse fazer uma cópia e usar. Lá dentro, apesar de bastante movimento e muita coisa acontecendo nos vários ambientes, não havia nenhum dono, gestor ou responsável pré-definido por qualquer das tarefas relacionadas à casa. Na web, a rede se materializava em um grupo de Facebook com inúmeros administradores e mais de 10 mil pessoas conectadas, além de um site com uma agenda aberta para que qualquer um pudesse checar espaços e horários livres, agendar e fazer seu evento, oficina, reunião ou workshop, sem nenhum pagamento compulsório.
“A sugestão era a de que quem usasse a casa contribuísse com o valor que quisesse, pelas caixinhas espalhadas pelo espaço ou com cartão de crédito, pela internet”, conta Juliano Souza, co-fundador da Melhor Escola, uma das iniciativas germinadas ali. A Laboriosa89 era o experimento vivo de um modelo organizacional onde os responsáveis não eram pré-definidos e qualquer um podia se responsabilizar, a qualquer tempo e pelo tempo que quisesse, para atender às necessidades da comunidade.
Ou, como Oswaldo Oliveira colocou nas redes sociais: “O que puxa é a necessidade do presente. Não há planejamento para eventuais necessidades que podem ou não acontecer no futuro. Qualquer um pode se empoderar. Não precisa de aprovação. Não há decisão coletiva para ser tomada em um campo de abundância. Só há decisões individuais que interagem com o todo”.
Liberdade e autonomia não vêm com regras. Na casa havia apenas algumas instruções simples de como lidar com algumas coisas objetivas, como a limpeza. “A única regra, se é que podemos chamar assim, era a de que você poderia fazer qualquer coisa, desde que não comprometesse a existência do todo. Ou seja, o limite para a liberdade individual era a liberdade do outro, e a existência e preservação do espaço”, conta Camila Haddad, especialista em economia colaborativa e frequentadora da casa.
UM DESAFIO ENCANTADOR, MAS NADA FÁCIL
Giovana Camargo, co-fundadora do Cinese, plataforma de aprendizagem colaborativa, fala sobre o choque que a proposta da Laboriosa provocava. “Estamos acostumados a estruturas hierárquicas. Vivemos padrões centralizados e estamos sempre buscando alguém para nos dar ordens e diretrizes. Quando qualquer estrutura diferente dessa se apresenta, ficamos confusos. A intenção da Lab89 era justamente essa: mostrar outras possibilidades de nos organizarmos como indivíduos”, diz ela.
Esta é também a visão de muitas das pessoas conectadas à história do lugar, a de que a grande vocação da Laboriosa 89 é provocar relações horizontais e não hierárquicas, trazendo, inclusive, esse modo distribuído de se organizar para o trabalho, para um novo jeito de empreender. Um texto de Oswaldo fala disso, e das dificuldades que traz:
“É difícil empreender em rede. Primeiro porque não estamos acostumados a olhar para dentro de nós mesmos. Estamos acostumados a nos apoiar nas próteses da hierarquia. Somos um cargo, uma empresa, um título, um projeto. E nestes lugares não somos, só estamos”
Não à toa, foi na Lab89 que centenas de projetos inovadores, colaborativos e em rede, surgiram e se desenvolveram. Além do já citado Cinese (plataforma de aprendizagem colaborativa), o Estaleiro Liberdade (autoconhecimento e empreendedorismo), o Educando por projetos (plataforma de aprendizagem por interesse), o PegCar (compartilhamento de automóveis), o Unlock (plataforma de financiamento coletivo recorrente), o Roupa Livre (projeto de consumo colaborativo que propõe a ressignificação de peças de vestuário), e inúmeras outras iniciativas que compartilharam bases de colaboração, liberdade, autonomia e não-hierarquia.
“Na Lab89, encontrei um campo aberto de possibilidades. Muito da minha história profissional do último ano tem a ver com o que vivi na casa”, diz Safiri Félix, fundador do Coinverse, de compra e venda de bitcoins.
Com o rompimento de vários paradigmas antigos, o que de longe parecia ser só um ótimo espaço para se trabalhar, de perto, passou a ser bem mais que isso. A experiência de empreender na casa e o processo de troca e conexão constantes parecem ter transformado não só o rumo de vários negócios, mas também se tornado um veículo de desenvolvimento humano e pessoal.
“A Lab89 foi, para mim, um espaço de livre interação social, onde aprendi a enxergar que possibilidades são potencialidades. Lá, percebi a importância de existir zonas temporárias de autonomia para conhecer pessoas através da minha própria experimentação, abraçando o erro e permitindo o acerto”, diz Lella Sá, coaching e co-fundadora do Estaleiro Liberdade.
Coerentemente com a proposta de rede, a sustentação da casa também era distribuída: quem quisesse, usuários do espaço físico ou não, poderia contribuir para que a casa existisse através do Unlock, plataforma de financiamento coletivo recorrente similar a um crowdfunding, mas para o apoio de projetos a longo prazo. Com este modelo, a casa chegou a ter centenas de apoiadores e a arrecadar mais de 15 000 reais mensais em um ano de existência.
SE ERA TÃO LEGAL, POR QUE ACABOU?
Apesar de o financiamento pelas pessoas ter sido colocado em prática desde o início, junto com a transparência financeira, foi Oswaldo quem garantiu os aluguéis de antemão para o proprietário no primeiro ano da casa — o que, para muitos, teria sido uma estratégia um bocado paradoxal. Assim, com seu desligamento do projeto, no começo de 2015, houve uma dificuldade da rede em seguir ocupando a casa e renovando propósitos e ideais coletivos.
“Se criou, de certa forma, uma dinâmica um pouco dependente do iniciador. Ele garantiu por muito tempo financeiramente o espaço e também sustentou o campo de interações. Com a saída abrupta dele, esses dois pilares ficaram faltando”, diz Sergio Andrade, do Educando por Projetos.
Além da dificuldade em encontrar um equilíbrio financeiro, alguns também reforçam a importância que se criou em torno da presença do iniciador, beirando uma dependência. “O Oswaldo nos ensinou a trabalhar em rede, de modo mais horizontal, aberto e fluído, e aprendemos muito. Mas vejo que as pessoas tiveram dificuldade em seguir passando o aprendizado para frente, protagonizando essa história. Ele era o único apto e disposto a conduzir, ensinar”, diz Paula Belleza, chef de cozinha e fundadora de um blog de culinária e canal no YouTube, que usava a casa como espaço para suas gravações e aulas.
O comunicado de Fabio Novo é extenso e revela algumas partes chatas da rotina, do cotidiano, de cuidar da uma casa que se tornam pequenos pesadelos dentro de um sonho de colaboração permanente e harmoniosa. Displicência no trato com o lixo, falta de iniciativa em repor um galão de água, abandono dos espaços e o arrombamento e saque da caixinha que ficava na cozinha são eventos citados. Ele escreveu:
“Tem hora que é para a gente começar, tem hora que é para persistir e continuar e tem hora que é para terminar. Acho que é este o caso aqui”
Ele prossegue e diz que, embora não seja uma decisão fácil, tem certeza de que é a decisão correta. “Estou com a consciência tranquila e acredito que, de uma forma ou de outra, este movimento ajudará no processo de amadurecimento de todos nós e abrirá espaço para muitos outros movimentos inovadores e criativos. Afinal, em 18 meses de ocupação este projeto proporcionou infinitas interações, conexões, descobertas e aprendizados”, escreveu.
Quanto a isso parece não haver dúvidas. Bem maior que questões individuais, fica uma visão mais ampla de um aprendizado coletivo que ainda está em curso. “Temos um grande caminho para trilhar quando o assunto é a combinação de compromisso e liberdade. Estamos aprendendo. E a Laboriosa 89 foi um passo extremamente importante nesse sentido”, diz Camila Haddad. Sua sócia na Cinese, Giovanna Camargo, complementa: “Precisamos compreender que o fim não significa necessariamente fracasso. No caso da Lab89, o fim da casa é parte de um ciclo. Muita gente passou por ali, se transformou e transformou seus negócios, e vai semear uma nova cultura daqui em diante”.
UM ENCERRAMENTO QUE NÃO É O FIM
O próprio Oswaldo Oliveira concorda que a casa fechar as portas não representa o fim de algo que se semeou por lá e que é muito maior que aquele espaço. Ele falou ao Draft: “A rede transcende o espaço físico, não tem nome nem lugar. Lugares servem de espaços para acolher a manifestação física do que é de natureza virtual”. Oswaldo lembra a trajetória dessa experiência, que começou antes da Madalena 80, passou estes últimos 18 meses na Laboriosa 89 e, agora, seguirá em frente:
“A casa será entregue e a rede continuará a sua manifestação em outros lugares. Alguns já existem e, no tempo deles, morrerão também. Outros não existem ainda mas nascerão, no seu tempo. E assim a vida segue tendo como única constante a transformação”
Muitos dos empreendedores e parceiros da rede, de fato, aguardam o surgimento de outros espaços com os mesmos princípios. “A casa não é a rede mas, sem um espaço físico agregador, a rede perde força. As conexões presenciais são muito importantes, e, até por isso, tenho certeza que elas vão encontrar outros espaços para acontecer”, diz Juliano Souza.
Outros já protagonizam histórias parecidas com a da Lab 89, aplicando os aprendizados em vários empreendimentos e cidades diferentes, reproduzindo acertos e testando outros caminhos possíveis.
É o que aconteceu com Felipe Kuster, fundador da Solimões 541, casa colaborativa em Curitiba que nasceu inspirada na Laboriosa 89. “Acordei um dia e percebi que estava sustentando um discurso, reproduzindo algo. Foi quando resolvi me desconectar um pouco do Oswaldo e da Laboriosa 89 para criar algo realmente genuíno e fazer o que eu achava que tinha que ser feito, naquele contexto particular”, diz ele, hoje à frente de um projeto autônomo, laborioso, como várias outras casas e movimentos em rede pelo Brasil. Segue o jogo.
(*Anna Haddad, autora desse texto, é empreendedora, fundadora da Cinese, e participou da rede Lab 89 no último ano.)
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