Quando tinha quinze anos, Anna Haddad saiu de Campo Grande rumo a São Paulo para cumprir a meta traçada pela família: estudar no colégio Bandeirantes. A tradicional escola, que fica no bairro do Paraíso, é reconhecida pelo ensino rigoroso e por atrair alunos que não querem fazer escala (os famigerados cursinhos) para passar no vestibular. Anna cumpriu o roteiro. Tirou boas notas, terminou o ensino médio e, aos 17 anos, foi aprovada em Direito, na PUC, em São Paulo. Cursou a faculdade e, também seguindo o roteiro, começou a trabalhar em um escritório de advocacia, na área empresarial. Até que, aos 25 anos, a rotina e o tailleur passaram a incomodar:
“Olhava ao redor e não fazia ideia de como tinha chegado até ali, que percurso tinha realizado. Eu tinha 25 anos, era advogada, mas não sabia o que queria da vida”
Era hora de sair do roteiro: ela pediu demissão e pegou a estrada de volta para casa. No próximo ano e meio, passou a trabalhar com o pai na construtora da família e dividiu-se entre o expediente na empresa e uma pós-graduação em direito imobiliário, feita em São Paulo. “Pegava a estrada semanalmente. Foi ótimo me reaproximar da família, mas percebi que também não era aquilo que queria para a minha vida”, conta.
Quando estava em São Paulo, Anna aproveitava para pesquisar, ler, encontrar amigos e, dessa forma, tentar enfrentar a inquietação — pessoal e profissional. Durante o processo, percebeu que gostava de Educação e decidiu se aprofundar: passou a ir a encontros, aulas e palestras, principalmente as que discutiam a “descolarização” ou que questionavam o modelo tradicional de ensino.
Apesar da angústia que a crise de identidade provoca, nessa fase Anna não estava sozinha. Tinha como interlocutora alguém bem próxima, e que passava por algo similar: sua irmã mais nova, Camila Haddad — que também fez Bandeirantes e que também entrou direto na faculdade (iniciou Publicidade, trancou, e depois concluiu Administração de Empresas na FGV). Depois de formada, Camila estava em Londres, fazendo mestrado em Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. Lá, ela também estudou economia colaborativa. Foi quando o papo entre as duas ficou ainda mais estimulante. “Percebi que poderia me encontrar empreendendo um negócio que fizesse sentido para mim. Passamos a pesquisar juntas nessa direção”, conta Anna.
As irmãs (hoje com 27 e 28 anos) chegaram a montar um plano de negócios para uma empresa que “recirculasse” mercadorias e fosse colaborativa. Seria uma plataforma de compra, venda e troca de produtos. Elas mapearam o mercado, identificaram um ineditismo na proposta, montaram a estrutura, mas, segundo Anna, algo subjetivo não permitiu que seguissem em frente. “Não era um motivo racional, simplesmente não fluiu.”
AO TENTAR SE ENCONTRAR, ELA ENCONTROU UM NEGÓCIO
Na tarefa de autoconhecer-se, Anna percebeu a dificuldade que tinha em acessar conteúdos diversos. “Os formatos eram muito tradicionais, vinculados ao modelo professor-aluno. Eu sabia que tinha muita gente com muito conhecimento por aí, e tantas outras querendo aprender, mas sem se encontrarem. Eu era uma delas”, diz ela.
A angústia, dessa vez, serviu de ponto de partida para um negócio: o desejo de compartilhar conhecimento fez nascer a Cinese. A plataforma agrega pessoas que querem ensinar algo com aquelas que desejam instruir-se. Em qualquer lugar, em qualquer cidade. De matemática financeira a um bate-papo sobre futebol. Com doutorado ou sem. Anna fala a respeito:
“Qualquer conteúdo é válido se alguém tem interesse nele. No Cinese, acolhemos tudo e o pano de fundo é um só: o empoderamento das pessoas”
Antes de colocarem o site oficialmente no ar, as irmãs — que a esta altura já tinham acolhido uma terceira sócia, Giovana Camargo, 25, que cursou Gestão Ambiental e atua como gerente de comunidade na Cinese — fizeram uma espécie de “soft open off-line”, para testar a ideia. Será que as pessoas teriam interesse em educação informal? Em junho de 2012, as sócias organizaram a Semana Cinética, uma série de encontros em São Paulo com temas como educação informal, democracia e arte, música, urbanismo e mobilidade e minorias. “As pessoas se engajaram, cederam espaço. Foi incrível. Mais de mil pessoas passaram pelo evento”, lembra Anna.
Com um investimento de 50 mil reais, meses depois do evento offline, em agosto de 2012 o Cinese foi ao ar. A plataforma funciona como uma rede social: de um lado, os usuários propõem encontros temáticos, palestras, aulas, workshops. Outros se inscrevem para buscar assuntos de interesse. O aprendizado é livre, coletivo e acessível. Desde o lançamento até hoje, já foram feitos 1 077 encontros entre os 10 920 usuários cadastrados.
No “menu” do Cinese há cursos e encontros gratuitos — como os de Meditação Transcendental, Modelos de Financiamento e Novas Moedas ou, ainda, Democracia Direta — e também opções pagas — Marchetaria Criativa (200 reais), Apreciação Musical (30 reais), Coaching de Carreira (2 790 reais). Além deles, há os canais curados, que levam a assinatura de instituições como o Cemec, o Estaleiro Liberdade, o portal Papo de Homem entre outros.
OK, IDEIA LINDA, MAS: COMO CAPITALIZAR?
No começo, os encontros do Cinese eram gratuitos, o que acabou dando à plataforma uma característica de agregadora de cursos “socialmente relevantes”. Mas — e este é um dilema comum, central, a inúmeras ideias bacanas de plataformas digitais — era preciso capitalizar. Pensando nisso, Anna e Camila experimentaram cobrar uma taxa dos usuários que propunham uma aula remunerada. A conta era: cobrava-se 18% do arrecadado com a aula, dos quais 12% ficava com o Cinese e 6% ia para o MoIP (o sistema de pagamento on line utilizado). Deu certo, mas por pouco tempo.
“Percebemos que estávamos muito atreladas à meta de um determinado número de encontros por mês para fechar o orçamento. Não queríamos ser reféns disso. A visão de meta, lucro não faz sentido para nós. Por isso voltamos atrás e ainda estamos testando novos modelos”, afirma Anna. Ao questionarem o tipo de demanda que teriam de gerenciar, as sócias resolveram eliminar a cobrança da taxa. Elas mudaram o jogo. Mais que isso, colocaram todos os custos expostos no site, de forma transparente. Dessa vez, o retorno foi bem melhor.
Já no primeiro mês do novo modelo de arrecadação, voluntária, elas já conseguiam cobrir os custos fixos do negócio — que conta com o designer Rafael Nepô e o programador Kenzo Okamura. Além da participação pela aulas comercializadas via Cinese, outra fonte de receita são os chamados “canais curados”: escolas e espaços para cursos que publicam seus eventos na plataforma e contribuem com uma quantia mensal pelo uso do espaço.
Um pouco na tentativa e erro, mas também usando muito do que Camila tinha estudado sobre economia colaborativa e planejamento, aos poucos o Cinese percebeu que tinha um outro flanco no qual poderia atuar: elas notaram que a habilidade em ajudar outros a empreender também era um negócio. Assim, passaram a oferecer consultoria para ambientes e processos colaborativos. Aos poucos, conquistaram seus primeiros clientes nessa área, entre eles a Pharus, uma empresa de inovação e design, e a Petalusa, um espaço colaborativo na zona sul de São Paulo.
Quando pulou fora do roteiro que estava programado para si, Anna acabou encontrando — e reconhecendo — um novo percurso profissional. Encontrou também a parceria com a irmã, Camila, e ainda teve a sorte de ver transformada a sua necessidade de uma instrução mais fluida e objetiva em um business com relevância na sociedade.
Hoje em dia o Cinese tem os custos fixos cobertos pelas contribuições espontâneas (a taxa de percentual livre, que quem vende aulas repassa ao site) e pela mensalidade paga pelos canais curados. O dinheiro para reinvestir na empresa e remunerar as sócias e a equipe vem das consultorias.
Elas encontraram o rumo, já sabem para onde querem ir, mas ainda estão construindo o próprio caminho. Isso implica na vontade de estabelecer paradigmas inovadores também na forma de se organizarem como empresa. Por exemplo: no Cinese não existe hierarquia. As decisões estratégicas da pequena empresa são tomadas, na maior parte do tempo, em quatro mesas agrupadas em uma grande sala no Laboriosa 89, um espaço de coworking em São Paulo. Dali saíram as últimas definições do novo site, que será lançado em julho com a promessa de dar mais autonomia aos usuários.
No dia a dia, porém, elas perseguem o mesmo que qualquer empreendedor atento: buscam ter custo baixo e colaboradores volantes, que trabalham por projetos e com flexibilidade. “Quero uma empresa que tire o melhor de mim e não me trave”, diz Anna.
O objetivo no próximo ano é aumentar a comunidade Cinese e expandir a operação para outros Estados. Outra meta é a de atrair uma audiência mais jovem. “Queremos ajudar aqueles que ainda não ingressaram na faculdade. Dar uma força para que consigam ‘sair da caixa’ antes de escolher a profissão,” conta Anna. Ela parece querer poupar alguma outra garota recém-saída do colégio da angústia de seguir um roteiro sem saber o porquê. Com a Cinese, seus cursos livres e aulas experimentais, quem sabe não fique mais fácil encontrar sua própria estrada.