Se você associa brechó a roupas que causam espirros pelos ácaros acumulados ou pela naftalina para disfarçar o “cheiro do tempo”, saiba que sua ideia é mais ultrapassada que o nome brechó, uma corruptela de Belchior, o mascate português dono da primeira loja de usados no Rio de Janeiro no início do século 19.
A migração dessas lojinhas para o universo online somada à adesão ao consumo consciente pelas novas gerações tiraram de vez a “camada de pó” que ainda existia sobre o conceito, tornando o consumo de itens de segunda mão uma tendência.
Foi essa proposta cool e sustentável, além da crise econômica trazida pela pandemia, que fez o Repassa crescer 130% em termos de faturamento em 2020, quando atendeu cerca de 250 mil pedidos.
Com um acervo de 280 mil peças disponíveis (entre vestuário e acessórios), o negócio se autodenomina o maior brechó online do Brasil e já recebeu cerca de 20 milhões de reais em aporte de fundos de investimento, entre eles o Redpoint eventures.
INSATISFEITO COM O PAPEL DA PUBLICIDADE, ELE DECIDIU APOSTAR NUM BRECHÓ
Tadeu Almeida, 37, sempre foi ligado à área criativa e, na época da faculdade, achou que o curso de Publicidade seria a melhor alternativa para desenvolver essa habilidade. Depois de formado, especializou-se em direção de arte, passando por grandes agências.
Encantado, no começo, pelo mundo da propaganda, ele foi perdendo o gosto pelo que fazia:
“Depois de virar noites trabalhando para vender produtos e empresas que não geravam impacto positivo no mundo e estimulavam o consumo desenfreado, comecei a me sentir incomodado, faltava um propósito”
Ele achou que ter a própria agência e poder escolher os clientes e produtos com os quais trabalharia seria uma solução para divulgar apenas produtos e empresas com algum impacto positivo. Juntou-se a outros dois sócios e fundou a ETC Propaganda.
Mas não foi bem assim. No final, eles não tinham tanto controle como imaginavam na seleção dos clientes e as contas para pagar acabavam atrapalhando a triagem. Nesta época, no entanto, Tadeu se aproximou de projetos digitais e viu que ali havia uma oportunidade.
O publicitário tentou aliar sua vontade de gerar impacto positivo e valor para a sociedade à chance de construir um negócio que movimentasse um grande valor financeiro. E assim, em 2015, nasceu o Repassa, quando Tadeu ainda tocava a agência. A princípio, ele investiu 100 mil reais. Ao longo dos primeiros anos (antes do aporte dos fundos), foram 350 mil reais injetados no negócio.
AJUSTANDO O FOCO: DE PRODUTOS USADOS EM GERAL PARA ROUPAS E ACESSÓRIOS
Apostar no segmento de usados, diz Tadeu, foi uma solução óbvia.
“Quando a gente aumenta o ciclo de vida de qualquer produto já fabricado, diminui-se a produção de novas coisas e, consequentemente, o impacto ambiental da indústria”
Fora isso, ele percebeu que os brasileiros têm o hábito de doar o que não usam mais. Porém, para as ONGs é muito melhor receber recursos financeiros em vez de objetos, que demandam a organização de um bazar.
Pensando nisso, o empreendedor estruturou a Repassa com foco na venda de todo tipo de produto usado — de eletrodomésticos a roupas — e em cima do pilar ambiental, viabilizando a economia circular, e do social, pois as pessoas podem optar por doar parte da venda realizada pela plataforma para instituições financeiras.
Em 2016, porém, o empreendedor entendeu que para ganhar escala precisaria atacar apenas uma categoria de produtos e escolheu o setor de moda, responsável por cerca de 10% das emissões globais de CO2 e quase 20% de consumo de recursos hídricos.
Com essa mudança, só nos últimos 12 meses, segundo Tadeu, a empresa já ajudou a economizar mais de 818 milhões de litros de água, evitou que cerca de 1 061 toneladas de CO2 fossem emitidas e reduziu o uso de 52 milhões de kW/h de energia.
A SEGUNDA PIVOTAGEM: CONVENIÊNCIA PARA COMPRADORES E VENDEDORES
Em 2017, o fundador foi além. Percebendo que o negócio precisava de um diferencial competitivo em meio a outros brechós online, deixou de ser apenas uma ponte entre compradores e vendedores para assumir a função de cuidar de todo processo — recebendo, fotografando e cadastrando os produtos.
“Vimos que 70% das peças das pessoas ficavam no armário paradas sem uso porque ninguém estava disposto a ter todo esse trabalho que envolve vender online. Então, decidimos testar arcar com essa responsabilidade”
Na época, Fernanda, estagiária (e hoje gerente da Repassa), era a única responsável por fazer o controle de qualidade das peças, fotografá-las e cadastrá-las na plataforma. Mesmo com esse trabalho de formiguinha, o negócio já sentiu a diferença na movimentação ao passar a controlar todas essas etapas.
“Começou a ter fila de espera de vendedores querendo usar o serviço mesmo sem divulgação por conta da conveniência”, diz. “E do lado dos compradores, vimos que eles se sentiam mais seguros em saber que uma peça estava fisicamente com a gente e tinha passado pelo nosso controle de qualidade, além das fotos mais padronizadas e descrições mais completas.”
UMA SACOLA DO BEM PARA CHAMAR DE SUA
Tadeu considera que essas duas mudanças foram responsáveis por praticamente um relançamento da plataforma, em março de 2017.
A partir daí, o negócio lançou o mecanismo da Sacola do Bem. Quem quer vender por meio da plataforma solicita o envio dessa sacola, pagando R$ 24,99 (como um setup do serviço), coloca todas as peças que quer repassar dentro (cabem cerca de 35) e escolhe se quer enviá-la por correio de volta para a empresa ou se deseja a coleta domiciliar.
Assim que chegam ao Repassa, os produtos passam por uma curadoria. De acordo com o fundador:
“Nossa seleção não é subjetiva. Reprovamos apenas peças com defeito, como roupa furada, sem um botão ou zíper, ou com muita bolinha de tempo de uso, por exemplo”
A empresa também treina os colaboradores para identificar falsificações e veta o recebimento e comércio de produtos que explorem animais silvestres, como estolas de pele.
O REPASSA SUGERE VALORES, MAS CADA VENDEDOR DECIDE QUANTO QUER PELA PEÇA
Depois do controle de qualidade, as peças são passadas a vapor, fotografadas e cadastradas. Neste processo, a Repassa sugere um preço para o vendedor.
“Nossos especialistas de moda indicam um valor com desconto que varia de 50% a 90% em relação ao preço original da peça, mesmo que seja um produto ainda com a etiqueta”
O vendedor pode ajustar isso, diz Tadeu, até 25% para cima ou até 50% para baixo. “E se não concordar com essa margem, pode pedir a peça de volta, arcando com o frete da devolução.”
Caso os produtos sejam adquiridas por intermédio da plataforma, o vendedor fica com 60% do valor e o restante é a comissão do Repassa. O vendedor escolhe se quer receber seu pagamento em uma e-wallet (com a quantia depois transferida para a sua conta) ou se prefere usar o dinheiro na própria plataforma, ganhando 10% de desconto nas compras. Em 2020, foram repassados mais de 10 mil reais para quem vendeu pela plataforma.
Também dá para doar uma porcentagem do valor para uma das 40 ONGs cadastradas no Repassa, que abrangem diversas causas e vão desde instituições como GRAAC à Adote um Gatinho. Já foram doados, no último ano, cerca de 1 200 reais para as organizações parceiras, além de 188 mil peças de roupa.
“Nesse modelo, as peças ficam listadas no perfil da instituição e do usuário e a gente mostra para quem vai comprar qual o percentual que vai para a ONG”, explica Tadeu. “Para cada 1% que o cliente doa, a gente dá 1% de desconto na tarifa da sacola. Quem doa 100% das vendas não paga pelo serviço.”
No caso do comprador, ele não desembolsa nada para usar o serviço do Repassa, pagando apenas o preço da peça e o frete, que varia de acordo com o CEP do cliente.
O QUE GRANDES MARCAS GANHAM AO FAZER PARCERIAS COM O REPASSA
Uma iniciativa mais recente do Repassa é a parceria com grandes empresas do varejo de moda. O projeto piloto começou com a Malwee, em outubro de 2019.
A marca passou a oferecer gratuitamente a Sacola do Bem para quem vendesse roupas usadas com sua etiqueta pela plataforma da startup, oferecendo vale compras para que posteriormente esse vendedor consumisse novas peças da empresa.
“A gente identificou uma necessidade do varejo de moda de se posicionar dentro da economia circular e de aderir a esse consumo mais consciente, afinal a indústria da moda é a segunda mais poluente do mundo, e também tem toda a questão do trabalho escravo”, afirma Tadeu.
“Entendemos que com esse modelo poderíamos potencializar o trabalho de marcas que já estão engajadas com outros projetos de sustentabilidade e ajudar aquelas que precisam dar o primeiro passo nesse sentido”
Ainda segundo o empreendedor, essa é uma forma de ajudar a fortalecer o relacionamento dos clientes com a marca e criar uma recorrência de geração de receita
Além da Malwee, seis empresas fazem parte dessa parceria: C&A, Dudalina, Havaianas, Intimissimi, Renner e Shoulder, totalizando 50 lojas. A meta é chegar a 500.
COM MAIS GENTE EM CASA NA PANDEMIA, O SEGMENTO CRESCEU
Segundo dados de uma pesquisa de 2019 realizada pela ThredUp, a venda de usados cresceu 25 vezes mais rápido do que o varejo no mundo, movimentando 28 bilhões de dólares.
De acordo com Tadeu, as gerações Y e Z, mais conscientes e sustentáveis, estão acelerando essa tendência. E a pandemia também.
“A gente teve mais tempo em casa para avaliar tudo o que tinha parado no guarda-roupa. As pessoas criaram mais consciência de consumo ao ver, no isolamento, a poluição diminuindo nas grandes cidades e vida selvagem voltando”
Outro fator, diz Tadeu, foi a ascensão do conceito de ESG como tendência de mercado — assim como a compra por e-commerces, em meio ao distanciamento social.
Se havia algum preconceito em relação à compra de peças usadas, afirma o empreendedor, isso hoje é passado:
“Cada vez mais o consumidor consciente sabe que energia ruim não é uma peça que já foi usada, mas uma feita com trabalho escravo”
E entende também, diz, que um produto de segunda mão está gerando impacto positivo, economia para o bolso, além de ser uma peça mais exclusiva porque não foi produzida em massa.
O perfil de quem vende e de quem compra mudou bastante. Antes, diz ele, a maioria dos vendedores era das classes A, B e C, e os compradores, da B, C e D. Mas, cada vez mais, os vendedores estão se convertendo em compradores.
Os habitués de brechó continuam a ser majoritariamente as mulheres. A maioria das usuárias do Repassa têm entre 20 e 35 anos, sendo que 90% das peças disponíveis na plataforma são femininas, e o restante está dividido entre o público infantil e masculino.
ELE NÃO SE CONTENTA COM POUCO
Para o futuro, o Repassa quer continuar crescendo e seguindo os instintos “megalomaníacos” que Tadeu afirma possuir.
“Estamos no primeiro passo da nosso maratona, não realizamos nem 1% de onde a gente busca chegar e isso em todas as frentes — do volume de peças até o impacto socioambiental, financeiro e de empregos gerados”
Hoje o time conta com 246 pessoas. Uma das medidas para continuar crescendo é a mudança de sede. Agora em julho, o Repassa deixa um espaço de 3 200 metros quadrados na capital paulista (que acomoda tanto a operação de estoque e expedição quanto a área administrativa e o time de produção e cadastro) para ocupar uma sede maior.
A empresa passará para uma área de 4 700 metros quadrados, em Jundiaí, no interior de São Paulo, onde o estoque será verticalizado, comportando mais de 16 mil metros quadrados. O empreendedor não abre os valores, mas afirma que a previsão de crescer o faturamento é ambiciosa, na faixa de 300%.
E se ficou alguma dúvida sobre como é o guarda-roupa de Tadeu, ele garante:
“Cerca de 90% das peças vêm do Repassa. Eu compro pelo menos uma vez por mês, usando diferentes usuários, para saber como está o funcionamento e a qualidade da plataforma — e mando uma Sacola do Bem a cada dois meses para lá.”
Nossa vida ultraconectada gera uma montanha de lixo eletrônico. Diante desse cenário, Rodrigo Lacerda criou a Händz, que produz cabos, carregadores, fones e caixas de som com materiais como algodão, bambu, cortiça e grãos de café.
Como erguer um “espaço transcultural” numa das menores capitais do país? E sem nenhum aporte público? Josué Mattos insistiu nesse sonho e hoje dirige o Centro Cultural Veras, em Florianópolis, criado e mantido por uma associação de artistas.
Até os 6 anos, Sioduhi se comunicava apenas em tukano, língua falada por seu povo, os piratapuya. Hoje, o estilista se baseia nas tradições indígenas para produzir roupas com fibras da Amazônia e um corante têxtil à base da casca da mandioca.