Da porta para fora: ruas asfaltadas, esgoto encanado, uma praça. Da porta para dentro: vazamento, umidade, mofo e falta de ventilação.
A primeira fase do parágrafo acima pode não ser a realidade de todas as favelas brasileiras (é da minoria) mas é ao que se restringem, nessas áreas, os projetos de urbanização feitos por políticas públicas. A segunda frase é o que acontece em, oficialmente, 12 milhões de moradias populares no Brasil (fala-se em 16), problema que está no foco da empresa social Programa Vivenda, criada por Fernando Assad, 31, Igiano Lima, 34 e Marcelo Coelho, 35.
“A Vivenda quer resolver a questão da inadequação de moradias da população de baixa renda, que causa problemas de insalubridade e comprometem a saúde de idosos e crianças. Percebemos que é uma lacuna para qual ninguém está olhando com o devido cuidado”, conta Fernando.
O Programa Vivenda consiste em kits de reforma – há o kit banheiro, o revestimento, o ventilação e o antiumidade – baseados em soluções integradas que resultam em obras eficazes (planejadas e desenvolvidas por mão de obra qualificada), rápidas (levam cerca de cinco dias) e financeiramente acessíveis (o custo é baixo e pode ser parcelado em 12 vezes) para moradores de favelas. Faz isso por meio de um escritório que monta dentro da comunidade e no qual trabalham arquitetos, pedreiros, ajudantes, estagiários e equipe de venda, todos contratados pela empresa em regime de CLT.
Para chegar a esse formato, que atualmente opera no Jardim Ibirapuera, complexo de pelo menos três favelas na periferia da zona sul de São Paulo e com nove mil casas, a Vivenda passou diversas fases, da concepção da ideia ao início das primeiras obras – em maio de 2014 – passando por pesquisas, conversas na comunidade e um processo de aceleração na Artemisia.
Tudo começou em 2009, quando a Giral, empresa de consultoria e relacionamento entre corporações e comunidades da qual Fernando é sócio, foi contratada para o projeto de pós-urbanização de uma favela pela CDHU (Companhia de Desenvolvimento Social e Urbano). Marcelo, que é historiador, e Igiano, arquiteto, trabalhavam na equipe técnica social da CDHU há dez anos, e estavam deixando a empresa para abrirem um negócio próprio.
DA ACADEMIA PARA A FAVELA
A Giral contratou os dois para um outro projeto, que enviou Marcelo para Minas Gerais e Igiano para Sergipe. Agora, trabalhando juntos, os três começaram a pensar no que seria o embrião da Vivenda. Nessa fase, Fernando ficou em São Paulo e entrou para o mestrado na FEA (Faculdade de Economia e Administração da USP), onde tinha se formado. Ele explica como a academia o ajudou a desenvolver a ideia para sua empresa: “Já que estávamos pensando em montar um negócio social focado em habitação, usei minha dissertação para avançar na construção dessa ideia. Optei por uma metodologia participativa, em que você constrói as soluções junto com o público pesquisado”.
No segundo semestre de 2012, o projeto em que Marcelo e Igiano trabalhavam terminou e ambos voltaram a São Paulo. Foi quando Fernando os chamou para uma conversa e propôs que montassem um grupo de moradores em uma favela. O objetivo era claro: eles queriam avaliar a real a possibilidade de estruturação de um negócio social no campo de melhoria habitacional. O Jardim Ibirapuera não foi escolhido por acaso, já que Igiano e Marcelo já tinham trabalhado lá juntamente com uma ONG local chamada Bloco do Beco, que desta vez ajudou a mobilizar os moradores e cedeu um local para as reuniões.
No processo, que durou seis meses e visava entender as demandas locais, Fernando, Marcelo e Igiano descobriram que:
1) As reformas em casas de favela, em geral, são mal feitas e ficam inacabadas por falta de dinheiro e de mão de obra qualificada.
2) Essas reformas não têm projeto de arquiteto ou especialista e, por isso, não resolvem de fato os problemas das casas.
3) Os moradores, em sua maioria, têm dificuldade para acessar mecanismos de crédito, geralmente por não terem um trabalho formal, o nome limpo ou a matrícula do imóvel (muitos são irregulares).
“Fomos atrás dos bancos e descobrimos que o microcrédito, hoje, no Brasil, é muito focado em iniciativas produtivas que vão gerar dinheiro para pessoa, para que ela possa pagar o crédito depois. Isso exclui o cliente da reforma”, afirma Fernando.
Ainda dentro dos seis meses iniciais, os três sócios da Vivenda entraram em contato com iniciativas extra-governamentais que, de alguma forma, tinham semelhanças com o projeto da empresa. A Habitat para a Humanidade, braço nacional da rede americana Habitat For Humanity, é uma delas e tem como causa a promoção da moradia como um direito humano fundamental. “É uma baita ONG, com escritórios no mundo inteiro. Estamos conversando com eles, mas existem diferenças de modelo. Por serem uma ONG, eles funcionam prioritariamente através de doações”, diz Fernando, e em seguida explica por que o modelo de negócio da Vivenda diferente.
“Temos que atender 16 milhões de casas e não dá para fazer isso apenas com doações. Sempre quisemos oferecer uma solução escalável, que tivesse abrangência nacional, por isso somos um negócio social”
A outra iniciativa que eles foram conhecer é da Ashoka, organização mundial sem fins lucrativos presente em 60 países (foi criada na Índia, por um americano, na década de 80), que promove programas com impacto social e fez, por aqui, dois projetos de habitação: o Clube da Reforma e o Reforma Mais, ambos em parcerias com ONGs, bancos, indústrias e associações setoriais. “Eles criaram um modelo de negócio replicável e fizeram cerca de 500 casas mas a proposta não era operar, apenas desenvolver o modelo. Isso gerou uma boa literatura de reforma, nós bebemos muito da fonte deles”, conta Fernando.
O PASSO A PASSO PARA AMADURECER COMO EMPRESA
No primeiro semestre de 2013, a Vivenda foi selecionada para um processo de aceleração na Artemisia, onde foram estruturados o modelo de negócio – que estipulou o tempo médio de cinco dias para cada reforma – e o planejamento financeiro. Ali, fizeram 10 reformas como piloto e confirmaram a qualidade do produto que tinham a oferecer.
O segundo semestre inteiro do mesmo ano ficou praticamente tomado por negociações com investidores. Eles chegaram a ser aprovados por fundos de investimento, mas declinaram. “No fim, não demos seguimento, pois achamos que ainda não era o momento. Queríamos testar mais o modelo”, diz Fernando.
Acelerados, mas sem investidores, eles decidiram seguir por conta própria: o investimento inicial (eles não revelam valores) veio de fontes como empréstimos no banco Pérola na pessoa física dos sócios; doações de pessoas físicas, Instituto Rede, Artemisia.
Nessa fase, Marcelo e Igiano ficaram um ano e meio vivendo de poupança e Fernando diminuiu bastante sua carga de trabalho na Giral (consequentemente, sua entrada de dinheiro). Hoje, ele vai para a Giral apenas uma vez por semana e coordena dois projetos.
O Programa Vivenda foi aberto em 2013 mas começou a operar, na prática, em maio de 2014, data de início das primeiras obras.
Em sete meses de funcionamento, a Vivenda reformou 72 residências. Cada reforma custa, no máximo, 5 mil reais. Essa receita, no entanto, ainda não entrou todo no caixa da empresa, já que os moradores parcelam a obra em 12 vezes. Para que o negócio, e os sócios, se sustentem, a Vivenda quer operar em escala, diz Fernando:
“O negócio social costuma ter uma margem muito pequena de lucro para que tenha um preço que a pessoa possa pagar. Ou você opera em escala ou morre, especialmente quando você vende para o cliente final, que é nosso caso”
Em novembro último eles fecharam uma parceria com um gigante do varejo brasileiro (o nome ainda não pode ser revelado) para que a Vivenda crie um modelo de escritório dentro das lojas de material de construção das comunidades. “É o teste do conceito de one stop shop de reforma na favela. Em vez do cara ir na loja só para comprar material, ele já compra a reforma”, diz Fernando.
A expectativa é que até o fim de 2015 a Vivenda já tenha um nível de receita capaz de pagar a estrutura do escritório que funciona dentro do Jardim Ibirapuera e, em mais um ano, já com o modelo consolidado, ele possa ser replicado no formato de franquia social em outras comunidades. Já para pagar os três sócios, haverá necessidade de investimento. E já há negociações em andamento, mas eles ainda não podem dizer com quem ou quais valores. Um tijolo de cada vez. Vem coisa boa por aí.
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