Livia Almendary e Carol Misorelli, ambas com 37 anos, construíram suas carreiras dentro de ONGs ou braços sociais de empresas e instituições até que, em 2013, resolveram criar o próprio negócio: a Taturana Mobilização Social, uma distribuidora focada em filmes de temática social. O objetivo é ampliar o público e os espaços exibidores desse tipo de obra, que acaba desaparecendo dentro do sistema já estabelecido de distribuição e difusão.
Hoje, elas dizem que as salas de cinema ficam com 40 a 60% da bilheteria e, por isso, optam por colocar no circuito filmes que investem pesado em marketing e lançamento e são quase uma garantia de retorno. Um exemplo prático são os blockbusters, que acabam ocupando a maioria das salas, deixando pouco espaço para as outras produções, como falam as sócias:
“Existem poucas salas para o circuito mais independente. Um filme de impacto acaba ficando apagado dentro desse sistema e, muitas vezes, não é visto por ninguém”
Para inverter essa lógica, elas investem em outro tipo de aproximação com os espectadores. A difusão social é uma das áreas de atuação da Taturana, que já tem uma rede de 3 mil salas exibidoras. A ideia é conectar o público interessado aos filmes, além de formar uma nova audiência, permitindo que tenha acesso a um produto que muitas vezes não chega até ela pelo circuito tradicional.
Nesse sentido, o que a empresa busca fazer é desenvolver estratégias de ativação de público mais assertivas, não se valendo da lógica de que “quanto maior a bilheteria, melhor”. Na visão da Taturana, mais importante é atingir quem, de fato, vai ser impactado pelo filme. Para chegar a esse resultado, são organizados debates e exibições em escolas, empresas, universidades, centros culturais, cineclubes e outros ambientes alternativos às salas de cinema convencionais. Elas cobram 15 mil reais para uma ativação de quatro meses.
CINEMA + DEBATE E UM ESPAÇO ONLINE PARA OS FILMES FICAREM ACESSÍVEIS
Depois da ativação, os filmes seguem na plataforma Taturana Mobi, sem custos. O espaço online foi criado em 2016 para funcionar como um fomentador da rede exibidora. Por meio dele, é possível agendar, gratuitamente, sessões coletivas. A contrapartida é que seja enviado um relatório de quantas pessoas assistiram ao filme, com foto e um informativo de como foi o bate-papo após a sessão. Quando grandes empresas se interessam pela exibição, elas pedem uma contribuição, que varia de acordo com o filme e o projeto. “Esse é um ponto que a gente quer avançar no nosso modelo de negócios. Nos Estados Unidos, existem formatos semelhantes, mas muito mais azeitados, em que grandes corporações, organizações e empresas pagam licenciamento, mesmo que pequeno”, conta Carol.
Por enquanto, elas acham importante manter esse canal gratuito para ajudar na ampliação da rede exibidora. Com a plataforma, fomentam a exibição de filmes em todo o Brasil e acreditam que, a partir disso e a longuíssimo prazo, vão conseguir que toda a cadeia seja remunerada.
Isso inclui desde a pessoa que organizou até o espaço que exibiu o filme, passando por quem fez a mobilização e a articulação, além do produtor. “É possível realizar isso, mas exige uma cultura de economia criativa que ainda está sendo criada, não só no campo do cinema, mas em várias outras áreas”, diz Livia.
E Carol complementa: “É uma questão de transformação cultural. Precisamos ir chegando nesse lugar devagar, ter uma rede, um cineclube que já funcione e que entenda o valor disso como um todo. A pessoa que está inserida nesse processo precisa entender que a iniciativa faz parte de uma economia e não é apenas um braço social dentro do sistema”.
Desde o começo deste ano, a Taturana também é uma distribuidora, negociando os filmes com cinemas, emissoras de televisão e sistema VOD (serviço pelo qual a empresa fica com 30% do valor negociado). Elas já lançaram comercialmente nos cinemas os filmes Jabuti e a Anta, Escolas em Luta e Chega de Fiu-Fiu. Estão distribuindo para TV/VOD os filmes DETOX SP, Parquelândia, Brasil, país do Presente?, Visionários da Quebrada e Quem Mora lá. “E já temos contrato de distribuição nos cinemas dos filmes Carta Aberta e Sertão: Imensidão Íntima, para os quais estamos captando para realizar uma campanha de impacto”, conta Carol.
Hoje, o faturamento da Taturana cobre todos os custos de operação, mas as sócias ainda fazem outros trabalhos para manter a renda. O investimento delas no negócio foi de 35 mil reais, sendo que a maior parte (25 mil reais) foi para colocar a plataforma Taturana Mobi no ar. “Até hoje, nosso maior investimento é o nosso trabalho dos últimos quatro anos”, dizem. E o maior desafio do negócio é a atualização constante da plataforma e o incremento do faturamento. “A gente tem esse desafio de conseguir um investimento mais importante e encorpado na plataforma, pois há um potencial enorme de trabalho por lá”, afirma Carol.
QUANDO A OCASIÃO AJUDA A FAZER O NEGÓCIO
A história da Taturana começou em 2013, quando Livia e Carol atuavam na difusão social do filme Elena, de Petra Costa. Naquele momento, a empresa ainda não existia, mas foi durante esse trabalho que elas perceberam a existência de um mercado a ser explorado dentro da distribuição e difusão social. Carol fala a respeito:
“Nos demos conta de quantos filmes que discutem temas relevantes são produzidos e não são distribuído ou são vistos por pouquíssimas pessoas”
Ela prossegue: “Metade são vistos por menos de 5 mil pessoas e vários, por ninguém. Percebemos, então, que o processo que a gente fez para o Elena poderia ser uma proposta de serviço”. Com isso em mente, no final daquele ano, elas já começaram a fazer contato com algumas produtoras. Durante os dois anos seguintes, a Taturana trabalhou somente com a difusão social, aproximando o público das obras. As sócias contam que foi um momento importante para entender o mercado e perceber as oportunidades. Em 2014, a empresa trabalhou na difusão de cinco filmes e teve um faturamento de 68.500 reais
Em 2015, foram 11 filmes, que geraram um faturamento de 133 mil reais. Foi, também, o momento de aproveitar algumas boas oportunidades do mercado. “Houve uma conjunção de saber identificar a oportunidade e ter tido a sorte de encontrar ganchos importantes”, fala Livia. Ela exemplifica como acontecimentos inesperados ajudaram no adensamento do público e fizeram algumas produções explodiram: “Estávamos trabalhando um filme sobre desmatamento e a questão hídrica quando estourou a seca em São Paulo. Depois, um filme sobre o sistema carcerário e aconteceu o debate sobre a redução da maioridade penal”.
Isso provocou a ampliação da rede exibidora muito rapidamente e, para permitir maior acesso às obras, elas criaram a plataforma Taturana Mobi, ainda de uma forma simples e até amadora. “Fizemos uma gambiarra tecnológica para dar conta com Google Forms, Dropbox e WordPress. Fomos pegas de surpresa com essa demanda, porque nosso plano era entender um pouco melhor as possibilidades e ir mais devagar”, diz Carol. Em 2016, elas trabalharam em algumas campanhas grandes, como a do filme Paratodos, que pegou carona na realização das Paraolimpíadas, e obteve faturamento de 280 mil reais.
COMO SE REPOSICIONAR NO MERCADO SEM PERDER O LADO SOCIAL
Chegou 2017 e elas resolveram tirar o pé do acelerador para olhar o negócio e reestruturá-lo. “Quando a gente fez o plano de negócios, percebemos que não bastava fazer mais e mais difusão social, precisávamos também transformar a nossa forma de atuação”, afirma Carol. Foi quando elas reduziram a atividade de forma intencional para se reorganizarem e se reposicionarem no mercado. “Mudamos o contrato social e começamos a nos aproximar de produtoras para pensar o lançamento comercial dos filmes. Assim, nos tornamos, de fato, uma distribuidora.”
Essa demanda veio tanto por parte de produtores que não queriam se associar às distribuidoras tradicionais, quanto da percepção delas de que havia um espaço para trabalhar um propósito de distribuição diferente.
Parar e olhar o negócio, mesmo à custa de um faturamento menor (em 2017, chegou a 90 mil reais), foi, segundo elas, fundamental para a reestruturação da Taturana. “Se não fizéssemos isso, iríamos ficar apenas recebendo demanda, o que não nos sustentaria. Percebemos que todos os projetos teriam um potencial maior se nos posicionássemos de forma diferente e fizéssemos parcerias certas”, diz Carol.
O próximo passo, que já está sendo traçado e, espera-se, traga mais renda para o negócio, como fala Livia, é a comercialização de trailers nas sessões de difusão social dos filmes. “Tivemos uma experiência durante a transição da TV digital no Brasil, quando nos procuraram para veicular uma vinheta dessa campanha na nossa rede. Ali, percebemos o potencial que temos para a exibição de trailers, vinhetas e curtas-metragens antes das sessões.” Ela ainda diz:
“Nosso púbico é engajado e as sessões sempre têm um propósito, seja territorial, organizacional ou social, o que muda a atenção das pessoas em relação ao que está sendo exibido”
Carol e Livia possuem trajetórias profissionais ligadas ao terceiro setor. Livia é graduada em História e Comunicação Social e depois de uma experiência no finado Jornal da Tarde, foi trabalhar com comunicação em organizações sociais e com educação popular, inclusive na Argentina, onde morou por quatro anos. Já Carol é formada em Administração de Empresas e Relações Internacionais e sempre focou os trabalhos e projetos desenvolvidos em sua graduação no terceiro setor. Trabalhou durante sete anos no Museu da Pessoa e, depois, com mobilização social no Canal Futura. Nesse meio tempo, ainda passou um ano na África, gravando histórias de vida.
Ao se conhecerem, durante uma férias na Bahia, perceberam os interesses comuns e surgiu a oportunidade de trabalharem na divulgação do filme Elena. E quando isso ganhou a forma de um negócio, a ideia de ter foco no social era intrínseca à proposta. “No começo a gente até pensou em ser uma organização social, mas não queríamos ser vistas como um braço social da distribuição do cinema. Para a gente, o problema da distribuição é desse mercado, que precisa ser transformado”, avalia Carol. Livia completa: “Não se trata de um mercado puramente econômico ou puramente industrial, mas que tem uma função social. E a gente acredita que essa transformação precisa ser feita dentro dessa perspectiva”.
PACIÊNCIA, UM INGREDIENTE ESSENCIAL DO BUSINESS PLAN
A missão não é simples, porque o setor de audiovisual possui sistemas estabelecidos e formas de trabalho muito diferentes do que a Taturana propõe. Existe, então, um desafio de fazer o mercado entender o valor desse tipo de distribuição e difusão.
“É bem difícil trazer inovação para um mercado que não consegue enxergar o valor que isso tem dentro da cadeia. Tem gente que opta por investir 30 mil reais no Facebook e não consegue enxergar um trabalho de formação de público como algo que tenha esse tipo de valor”, diz Livia. Para isso, elas seguem, de filme em filme, peitando quem acha que precisam de um “business man e duas estagiárias” (sim, elas já ouviram isso) e mostrando que há novos e rentáveis caminhos para fazer a arte chegar ao público.
No que depender delas, isso vai acontecer mesmo que seja daqui a dez anos. Pois, se tem um ativo que a Taturana mantém é a paciência. As sócias sabem que estão em um negócio que precisa de tempo para se solidificar e se tornar conhecido. Mas isso não significa esperar passivamente as coisas acontecerem (até porque, no mundo dos negócios isso não seria bom), mas sim ter um propósito, uma linha de atuação e se manter fiel a ela, acreditando no potencial e trabalhando para que as articulações sejam cada vez mais sólidas.
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