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As lawtechs querem melhorar o caótico ambiente jurídico brasileiro com inteligência e tecnologia

Marília Marasciulo - 17 set 2019
Bruno Feigelson, CEO da Sem Processo, startup de resolução de conflitos online, e um dos fundadores da Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs, que reúne cerca de 200 associadas.
Marília Marasciulo - 17 set 2019
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O ambiente jurídico brasileiro é um caos. Com mais de 1 milhão de advogados, 3 milhões de bacharéis em direito e 40 mil escritórios de advocacia, somos o campeão mundial de processos — há mais de 100 milhões tramitando neste momento, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Consumimos 1,2% do Produto Interno Bruto com o Judiciário, contando os gastos com servidores e terceirizados.

Mesmo assim, o dia a dia dos escritórios de advocacia está muito mais para o de Harvey Specter em Suits, a série com temática jurídica no ar desde 2011, do que algum possível episódio de Black Mirror em que juízes são substituídos por robôs. Tudo ainda é muito analógico, com tarefas repetitivas e escritórios gerenciados por “Donnas” — a secretária sabe-tudo-faz-tudo de Harvey — sujeitos à desorganização e a erros humanos (spoiler: quando Donna decide abandonar Harvey, ele fica tão desnorteado que acaba na terapia).

“Oitenta por cento dos pequenos escritórios não fazem nenhuma gestão de conhecimento, fica tudo na cabeça dos sócios”, diz Marina Feferbaum, professora de Direito da Fundação Getúlio Vargas e coordenadora da pesquisa “O Futuro das Profissões Jurídicas: você está preparad@?”, do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação. Divulgado no ano passado, o estudo identificou que os pequenos escritórios do país resistem a investir em tecnologia.

O cenário, porém, vem mudando graças à ascensão das lawtechs, startups de soluções tecnológicas para o Direito. Essas empresas oferecem serviços baseados em ferramentas que aplicam inteligência artificial, machine learning, análise de dados e algoritmos para tornar o trabalho mais rápido e eficiente.

Criada em 2017, a Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs (AB2L) já reúne cerca de 200 associadas, divididas em 13 categorias, como automação e gestão de documentos, resolução de conflitos online, e analytics e jurimetria.

NA JUSTIÇA ESTADUAL, CADA JUIZ TEM, EM MÉDIA, 7 MIL AÇÕES PARA JULGAR

Na prática, os termos “lawtech” e “legaltech” são usados como sinônimos. O ecossistema ainda é tímido, mas tem potencial. Em janeiro de 2019, fora do Brasil, foram investidos US$ 400 milhões em lawtechs, segundo o Techcrunch.

“Está havendo um movimento forte de se voltar para a América Latina, mas no Brasil os fundos ainda têm dificuldade de investir nas lawtechs, a atenção por enquanto está mais voltada para as fintechs”, diz Bruno Feigelson, um dos fundadores da AB2L e CEO da Sem Processo, startup de resolução de conflitos online.

O tamanho do mercado brasileiro é proporcional ao tamanho do problema que o Judiciário enfrenta. Somente na Justiça Estadual, cada magistrado tem, em média, 7 497 ações para julgar. Ao mesmo tempo, as instituições públicas sofrem com limitações de orçamento e força de trabalho, ainda que a maior parte desse material já esteja digitalizado: 82,6% dos processos judiciais hoje tramitam de forma inteiramente eletrônica.

A exemplo dos Estados Unidos, o Judiciário brasileiro conta com mecanismos de resolução de conflitos massificados. Um deles é o Incidente de Resolução de Demanda Repetitiva (IRDR): casos semelhantes entre si aguardam uma decisão de instância superior a ser aplicada uniformemente.

“Se tirarmos os blocos gigantes de litigantes, aí o Brasil é um país normal”, diz Angelo Ribeiro, fundador da Looplex, de automação e gestão de documentos. Hoje, cerca de 38% das disputas são com o governo, 38% com os bancos e 10% com empresas de “utilities”, como telefonia e planos de saúde. Eliminados esses gargalos, sobram cerca de 2% que de fato dependem de mais atenção.

O problema é que faltam “braços” para separar e agrupar os processos semelhantes. “Os seres humanos são ótimos para tarefas criativas, que envolvam estratégia e planejamento, mas não conseguem lidar com grandes volumes de informações”, diz Marcos Florão, diretor de Inovação da Softplan, empresa catarinense de softwares de gestão que tem como clientes escritórios de advocacia e instituições públicas do Judiciário. “Os profissionais do Direito precisam ser apoiados e potencializados pelas novas tecnologias.”

Para Marina, da FGV, o Direito só tem a ganhar com esse movimento. “As funções como são hoje vão mudar, vamos deixar de fazer tarefas repetitivas para nos dedicarmos às funções intelectuais do Direito, e sempre vão surgir novas questões que exigem a inteligência humana”, diz. Angelo, da Looplex, concorda. “Vai haver uma repriorização do trabalho, que vai deixar a advocacia mais interessante.”

A seguir, apresentamos quatro dessas startups que estão ajudando a “destravar” o Direito com tecnologia e inteligência.

 

Data Lawyer

Muito antes das lawtechs, uma empresa já apostava em um software jurídico inteligente. Fundada há 40 anos, a Aviso Urgente automatizou o clipping jurídico. Seu programa faz a leitura de diários e publicações para facilitar o acompanhamento do processo, além de manter um acervo de jurisprudências.

Foi da experiência trabalhando no setor comercial da empresa que Caio Santos, 28, percebeu que havia espaço para apostar em dados e sistemas de gestão para escritórios de advocacia. Assim, em dezembro de 2018, ele criou a Data Lawyer, com sede em Goiânia. Caio diz:

“Os advogados não saem da faculdade entendendo que precisam de gestão, e acabam enfrentando desafios que vão do fluxo de atividades do escritório à gestão processual”

Depois de criar um software de gestão de escritórios, a Data Lawyer lançou o DL Insights, uma ferramenta de jurimetria que usa dados para facilitar a tomada de decisão. Por enquanto disponível só para Direito Trabalhista, tem uma base de mais de 11 milhões de processos, analisados com inteligência artificial para gerar estatísticas. É possível saber desde a performance de advogados, juízes e empresas, até como o ambiente jurídico mudou pós-reforma trabalhista.

A startup investiu cerca de R$ 2 milhões nos dois produtos. As licenças custam a partir de R$ 99 por mês para o primeiro, e R$ 300 para o segundo, mas o valor depende do tamanho e da necessidade do escritório. A Data Lawyer tem hoje 2 100 usuários na ferramenta de gestão e dez testando a de jurimetria — a expectativa é conquistar 35 novas contas por mês até o fim do ano e R$ 10 mil por mês em novas recorrências no sistema de gestão.

 

Looplex

Mais do que criar um software para automação e gestão de documentos, a paulistana Looplex quer se tornar “o sistema operacional do direito digital”, conforme explica Angelo Ribeiro, o fundador. Para isso, atua em três frentes: converter a linguagem do direito para uma que máquinas entendam; criar um motor de automação e interação de serviços jurídicos digitais; e desenvolver documentos inteligentes.

Esta terceira vertente é, talvez, a mais interessante. Em vez de simplesmente automatizar a criação de documentos e o acompanhamento do ciclo de vida, a ideia da Looplex é que os documentos tenham “vida própria”, sendo capazes de atuarem sozinhos: poderão se autoprotocolarem, disparar e-mails de forma automática, inserirem-se no software de gestão do escritório etc.

“O caminho para o futuro é acelerar o trabalho do advogado: ele usa o know-how que pratica há anos e aplica em uma máquina mais poderosa”

Hoje, a startup tem dois produtos: o Looplex EasyDocs, de criação de documentos automatizados; e o Looplex Premium, um sistema com funcionalidades pensadas para o Direito, como assinaturas digitais, ferramentas para compartilhamento de entrevistas e os documentos inteligentes. Eles são vendidos com licenças pay-per-use, com preços que variam de R$ 300 por mês (por até 50 documentos na versão básica) a R$ 40 mil mensais por até 10 mil documentos na versão premium.

A Looplex investiu cinco anos de trabalho e R$ 7 milhões nas ferramentas. A startup tem uma receita recorrente de R$ 3 milhões e clientes como Unilever, Banco Votorantim e B3.

 

NetLex 

A mineira NetLex atua em todo o ciclo de um documento, da elaboração até o arquivamento. “Qualquer advogado precisa preparar documentos, seja para responder a um processo ou elaborar um contrato”, diz Wagner de Carvalho Possas, um dos sócios da startup, fundada em 2014.

A lógica por trás da ferramenta é uma “digievolução de formulários Google”, como descreve Wagner, para automatizar todas as etapas. Funciona como um processo de entrevista somente para os itens variáveis, em o que resultado final é um documento pronto. Um CTRL+C, CTRL+V bem mais eficaz e menos sujeito a erros humanos.

Ela também permite criar alertas automáticos para prazos, intermediar fluxo de aprovações, usar os dados do próprio documento para gerar insights, entre outras funcionalidades.

Antes, tudo isso era acompanhado de forma manual por meio de e-mails e planilhas, sem nenhuma padronização. Wagner afirma:

“Documentos em geral têm cheiro de burocracia, de algo travado, é um estigma, mas só porque não são trabalhados da forma certa”

Lançada oficialmente em 2015, a plataforma já era usada, em 2016, segundo Wagner, por 20 dos 100 maiores escritórios de advocacia do país. Atualmente, o mercado foi ampliado para englobar companhias em geral. Wagner lembra que mesmo para adquirir móveis para seu escritório, uma empresa precisa documentar junto a setores como compras, financeiro, diretoria e jurídico.

Com clientes como Raízen, Unimed e Localiza, a NetLex fatura hoje cerca de R$ 6 milhões por ano — e espera triplicar em 2020.

 

Sem Processo

A lição máxima de Harvey Specter é nunca levar ninguém para o tribunal e fazer o possível para fechar um acordo. No Brasil, Harvey seria exceção. Os brasileiros gostam de litigar: somente cerca de 15% das ações terminam em acordo, o que contribui para o grande número de processos no país.

A carioca Sem Processo, fundada em 2016 por Bruno Feigelson, tem como objetivo facilitar a resolução sem litígio. A ideia surgiu quando o advogado ajudou um amigo que queria entrar com uma ação contra uma empresa de telefonia — em vez disso, Bruno buscou o departamento jurídico da companhia e fechou um acordo.

“Em um ano de testes do MVP, recebemos casos envolvendo mais de 500 empresas”, diz Bruno, que buscava as empresas manualmente no Linkedin para apresentar a plataforma. Esse trabalho de convencimento foi um desafio:

“No início, senti muita resistência em relação ao uso de tecnologia e também ao próprio acordo. O Brasil é um país muito litigante”

Voltada para a comunicação entre advogados, a Sem Processo usa inteligência artificial e ciência de dados para identificar casos nos quais acordos são mais prováveis e orientar ambas as partes em favor de uma solução mais fácil e menos custosa. Para os advogados, funciona como um “WhatsApp” para negociar com a empresa que seria processada. Esta, por sua vez, tem acesso, pela plataforma, a dados para embasar sua tomada de decisão.

Segundo Bruno, cada advogado que usa a Sem Processo consegue negociar 500 acordos por mês. A plataforma funciona no modelo “pay as you go”, com uma taxa cobrada somente pelos acordos realizados; Raízen e Banco Olé estão entre os 500 clientes. A ambição do empreendedor é grande: fechando acordos, ele espera reduzir, em três anos, o número de processos no Brasil pela metade.

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