Você já leu o rótulo do detergente para louças ou do desinfetante que usa em casa? A atriz Fernanda Sal Lima (não confundir com a global) e a farmacêutica Alline Cipriano, ambas de 36 anos, já. E não gostaram nada do que viram: “O que nos é ofertado é altamente nocivo, com impacto muito grande para nossa saúde e para o meio ambiente”, diz Alline.
Para oferecer alternativas mais naturais e igualmente eficazes, as amigas lançaram em abril de 2016 a Ibeji Limpeza Consciente (pronuncia-se “Ibejí”), uma marca de produtos de limpeza biodegradáveis, naturais e artesanais. São elas mesmas que fazem toda a produção e cerca de 20% dos insumos vêm do quintal de Fernanda, que mora em uma chácara no interior do Rio de Janeiro. O restante é adquirido com produtores agroecológicos ou em compras coletivas, que reduzem o custo e o impacto ambiental do frete. A preocupação com o impacto ambiental está em todos os aspectos do negócio. De olho na pegada de carbono do deslocamento de matéria-prima, por exemplo, a Ibeji só usa embalagens produzidas no Brasil, e sempre feitas de PET, que é facilmente reciclável. Os recipientes são retornáveis e há um desconto para os clientes quem os devolvem.
O portfolio da Ibeji tem cinco produtos para limpeza doméstica: desinfetante (bergamota e limão, ambos com eucalipto na fórmula), lava-louças (neutro, limão e laranja), lava-roupas líquido (laranja e alecrim), spray antimofo e aromatizador de ambiente (em cinco apresentações). Os preços variam de 15 reais (o lava-louças, com 500 ml) a 25 reais (o aromatizador, com 200 ml). As sócias planejam novos produtos, a serem lançados em março deste ano.
Os produtos são vendidos em feiras no Rio de Janeiro e pelo Facebook, com entregas presenciais (“A gente gosta de conversar, explicar para as pessoas o que tem ali”, conta Alline). Há pouco tempo, também passaram a vender em dois pontos físicos: o espaço para pequenos produtores Casa Naara e o coworking Rua City Lab. Este, aliás, é um novo desafio para as empreendedoras, acostumadas a estar por perto no momento da venda. “Vai ser um desafio fazer com que o produto seja autoexplicativo”, diz Alline.
UMA SOLUÇÃO PARA A CASA DELAS. E DE TODOS
A ideia de buscar produtos naturais e biodegradáveis surgiu depois que as amigas se tornaram mães. Alline tem três filhos – o caçula é alérgico –, e Fernanda tinha acabado de dar à luz seu primogênito. Preocupadas com as próprias crianças, ambas começaram a pesquisar sobre o que havia nos produtos que usavam para limpar suas casas e descobriram componentes potencialmente tóxicos, desnecessários para a limpeza em si. Alline dá um exemplo:
“Lauril, por exemplo, está nos produtos de limpeza tradicionais mas só serve para fazer espuma. Espuma não limpa nada”
Elas procuraram produtos mais naturais, mas não encontraram no mercado. Então, estudaram o que de fato promovia a limpeza. Nessa busca por fórmulas artesanais, passaram a fazer os produtos para consumo próprio. Depois de um ano produzindo para si mesmas, elas tiveram a ideia de ampliar a produção e transformar isso em um negócio. Na visão de Fernanda, o que nasceu de uma preocupação pessoal é, na verdade, uma urgência coletiva: “A gente tem mania de achar que as coisas têm um fim, que jogamos no ralo e acabou aquilo. Mas quando usamos produtos tóxicos, aquilo continua impactando a natureza ralo abaixo”.
O nome escolhido para o empreendimento também reflete essa preocupação com o coletivo: na mitologia dos orixás, ibeji é a divindade das crianças gêmeas, de tudo o que está nascendo. “Não estamos sozinhos”, diz Fernanda. Depois de ancorarem essa intenção, na hora de planejar como seria o negócio as amigas estudaram as metodologias Canvas e Dragon Dreaming para elaborarem, juntas, o modelo de negócios da Ibeji.
A partir de economias pessoais, elas investiram 5 mil reais na compra insumos, equipamentos, embalagem e no pagamento das taxas para participar das primeiras feiras. As vendas começaram junho. O investimento inicial foi recuperado em três meses de operação, e elas fecharam 2016 com um faturamento aproximado de 12 mil reais.
EXCESSO DE CONFIANÇA E OUTROS ERROS DE QUEM ESTÁ COMEÇANDO
Empolgadas em fazer o negócio acontecer rápido, Fernanda e Alline começaram a produzir e a vender em ritmo acelerado, sem terem estruturado muito bem a parte administrativa e financeira da empresa. Aí, vieram erros comuns a quem está à frente de algo em que acredita demais. “No primeiro mês a gente não anotou nada”, conta Alline. Outro tropeço creditado à afobação no início da empreitada aconteceu na compra de matéria-prima.
No início do negócio, elas perderam muito dinheiro. Quando, mais adiante, finalmente se organizaram para comprar óleo essencial em coletivo, por exemplo, conseguiram pagar cinco vezes mais barato. “Essa foi uma das grandes pisadas de bola, mas a gente estava muito entusiasmada para fazer os produtos”, diz Fernanda.
Outra barreira, elas perceberiam mais tarde, está ligada ao preço final dos produtos e à dificuldade de criar público comprador. Ter uma produção artesanal, usar ingredientes naturais e insumos sustentáveis – tudo isso encarece o produto. A lista de desafios e peculiaridades é longa e está atrelada ao posicionamento natural da Ibeji. Um deles é respeitar o tempo da natureza (nem todas as plantas estão disponíveis o tempo todo), outro é o fato de oferecer um produto com prazo de validade menor (cerca de seis meses) que a concorrência, e que demanda atenção redobrada com estoque, o que as leva a ter de organizar produções mais frequentes.
O reflexo nos preços é brutal: 500 ml de um lava-louças tradicional custam cerca de 2 reais, contra 15 na Ibeji. “Entendo que nosso produto não é acessível para muitas pessoas. Mas, na conta social e ambiental do planeta, ele sai muito mais barato que o tradicional”, afirma Fernanda. Ela e Alline sabem que quem pode pagar por seus produtos é, ironicamente, o consumidor de classe média ou média-alta — justamente aquele que costuma ter empregados domésticos e raramente coloca a “mão na massa” na hora da limpeza da cozinha ou do banheiro.
“Temos até uma teoria de que é por isso que os produtos tradicionais do mercado são tão pesados, pois não serão usados por quem compra, e sim por seus empregados”, diz Fernanda. A Ibeji já participou de feiras voltadas para o público mais abastado, mas as vendas foram ruins. Mas elas não desanimam e encaram como missão da empresa — e delas mesmas, como cidadãs— conscientizar o maior número de pessoas possível. Fernanda fala a respeito:
“Mais do que isso de encontrar o público-alvo, temos como objetivo conscientizar as pessoas sobre a questão ambiental e de saúde que envolve os produtos de limpeza”
Nessa de testar a sensibilidade dos públicos e buscar conscientizar as pessoas, a Ibeji já entrou em feiras de diferentes perfis. Já tiveram gratas surpresas, como com a Ekobe, que aconteceu em uma grande praça do Rio e acabou atraindo passantes do local e foi um sucesso de vendas. Mas, claro, elas também já entraram em furadas: feiras em que o público não se interessou pelos produtos, eventos ao ar livre em que choveu, feiras que cobravam uma taxa de entrada muito alta etc. Fernanda conta que, em função disso, elas programaram um capital para se permitir errar.
O EMBATE DOS SONHOS COM A REALIDADE
“Hoje em dia, a gente pensa em até quanto podemos investir em cada feira”, conta Alline. O alto custo das feiras, aliás, foi uma pequena decepção para as amigas-sócias. As mais famosas, que elas vislumbravam participar quando criaram a Ibeji, muitas vezes se revelaram inacessíveis. “Para eu vender 900 reais em produtos que custam 20 reais, tem que ser um monte. É diferente do estilista que faz uma saia de 400 reais. Para nós, essa receita é mais difícil de levantar”, diz Fernanda.
Uma saída possível, que seria aumentar os preços quando a feira é mais cara, não é interessante para elas. “Quando temos dificuldades, devemos negociar com a feira, e nunca jogar esse peso para o consumidor”, diz Alline. Elas têm tido bom retorno com essa postura, e conseguiram desconto num dos principais eventos do Rio, como Alline conta: “O organizador entendeu que nosso produto era inovador e negociou uma condição especial para estarmos ali”.
Elas seguem nas feiras e, pensando no futuro, o que parece um impeditivo ao crescimento do negócio elas enxergam como uma nova fronteira. Se quem pode pagar pelos produtos da Ibeji muitas vezes não valoriza seus benefícios e os contratados para fazer a limpeza não podem arcar com preços altos, Fernanda e Alline têm um projeto de oficinas Ibeji. Nelas, pretendem ensinar mulheres de baixa renda a fazer seus próprios produtos de limpeza. “Não só fazer para usar em casa ou na casa do patrão, mas fazer como negócio, para se tornar uma fonte de renda para elas”, conta Alline. Ela complementa:
“Não quero ser uma empresa gigante nem a única que faça produtos naturais. Minha preocupação real é com o meio ambiente. Se todo mundo fizer o seu, vai ser lindo”
Para essa nova parte do sonho sair do papel, as oficinas, elas sabem que precisarão de verba para matéria-prima, logística e utensílios. “Não faz sentido eu chegar numa comunidade e cobrar por uma oficina”, diz Fernanda. Portanto, o projeto está em busca de editais de financiamento. “A gente diz que esse não seria nem um braço, seria o coração da Ibeji”, diz Alline.
Além das oficinas, há planos também para o crescimento do negócio original. Entre eles, o início da venda dos produtos via e-commerce, o aumento dos pontos de venda físicos e a introdução de produtos Ibeji em cestas de orgânicos vendidos por assinatura (apesar de os produtos Ibeji não serem 100% orgânicos). Elas também planejam participar de feiras em São Paulo e sonham ver a Ibeji em creches e escolas – ambientes repletos de crianças, que afinal foi quem impulsionou a criação da empresa.
Elas estão há menos de um ano à frente do negócio, mas já identificam alguns legados importantes desse processo. E citam como principal a redescoberta delas mesmas. “Descobri que posso ser feliz de outras formas, ter prazer e me realizar muito em algo que não seja só o teatro”, diz Fernanda. Alline, por sua vez, conta que durante nove anos foi sócia de uma farmácia de manipulação (ficava mais na gestão do que no laboratório). Em seguida, co-criou a GOMA, trabalhou em agências de comunicação e no projeto Vaga Viva. Depois desse percurso tão distinto, ela definitivamente se sente retornando às suas origens: “Estou me redescobrindo alquimista”.
Descobrindo fórmulas e redescobrindo a si mesmas, Alinne, Fernanda e a Ibeji mostram um caminho mais limpo e humano para nossa casa e para o planeta.
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